Altos conselhos, ciência-lixo e cães de guarda

A coluna ‘Planeta em transe’ de setembro comentou a publicação, na seríssima Food and Chemical Toxicology, do trabalho do professor francês Gilles-Eric Séralini e sua equipe, que demonstrava marcados efeitos cancerígenos do milho transgênico NK630 e do herbicida Roundup em ratos.

O referido trabalho começou a ser pesadamente questionado já nas primeiras horas após sua publicação. Era só o início de um longo processo de desmonte, apoiado em técnicas de marketing viral, uma versão eletrônica do vale-tudo (inclusive dedada no olho e chutes abaixo da cintura). Comunicados de imprensa da Monsanto, de diversas associações supostamente científicas e cartas à revista qualificaram o trabalho como inadequado, inconclusivo, tendencioso e militante, além de bobo e feio.

Em outubro, um novo comunicado parecia lançar nova luz sobre o tema. Emitido por um certo Alto Conselho das Biotecnologias (HCB, na sigla em francês), o curto comunicado desqualificava o estudo retomando os mesmos argumentos de comunicados anteriores, segundo os quais diversas falhas experimentais e estatísticas tornariam o estudo inconclusivo.

No entanto, alguns cliques no site do referido conselho davam acesso a um documento com críticas mais detalhadas ao trabalho da equipe do professor Séralini, elaboradas por um comitê técnico pluridisciplinar designado pelo Alto Conselho.

O comunicado formal, amplamente divulgado em 19/10/12, era uma resposta ao pedido igualmente formal dos ministérios franceses da ecologia, da saúde, da agricultura e do consumo, feito em 24/09/12, para que o excelso conselho se pronunciasse sobre o tema. Embora o estudo do professor Séralini tenha sido publicado no início de setembro, o site do HCB parece não tratar de outra coisa desde então. Até me perguntei o que o órgão fazia antes do tal estudo…

Independência em xeque

Segundo o site, o HCB é uma organização independente, cujos membros são escolhidos por notória competência científica, e tem como missão assessorar o governo e a sociedade sobre temas relativos a biotecnologias. Animador, não? Ainda segundo o site, o HCB é “uma estrutura original na paisagem europeia”, por ser constituído de dois conselhos, o Comitê Científico, liderado por Jean Christophe Pagés, e o Comitê Econômico, Ético e Social, sob a batuta de Christine Noiville.

O primeiro tem 38 membros representando “o largo leque de disciplinas científicas relacionadas às biotecnologias” e responderia “à necessidade de uma avaliação rigorosa dos impactos das biotecnologias sobre a saúde pública e o meio ambiente”, o segundo responderia “à necessidade de associar a essa avaliação uma reflexão mais ampla sobre os impactos econômicos, sociais e éticos das biotecnologias”. Seus 26 membros representam “os setores relacionados às biotecnologias”, sem mais detalhes.

Hummm… Se você estava procurando pela indústria agroquímica no HCB, achou

Hummm… Se você estava procurando pela indústria agroquímica no HCB, achou. Mas não se empolgue, ela não está representada apenas no segundo conselho. De fato, uma análise superficial da biografia dos doutores do Conselho Científico do HCB revela uma maioria de aposentados, com currículos pouco expressivos. Quando expressivos, os currículos listam pesquisas genéticas e bioquímicas relacionadas ao desenvolvimento e aplicação de biotecnologias, leia-se transgênicos. Deve ser este o tal “largo leque de disciplinas científicas” que representariam.

O HCB tem uma estrutura e composição que lembram muito a da Comissão Internacional sobre Relações Planta-Abelha (ICPBR, na sigla em inglês), mencionada na coluna de outubro, sobre a relação entre os pesticidas e o declínio das abelhas. Ambas ‘instituições independentes’ parecem ter como real objetivo o de dar um verniz de credibilidade científica ao lobby da indústria, porém, agindo como cão de guarda da mesma, atacando ferozmente a credibilidade de qualquer estudo que questione a segurança de produtos biotecnológicos.

O ataque mais recente foi a carta aos editores da Food and Chemical Toxicology instando a revista a submeter o trabalho a novo escrutínio, expressando consternação pelo fato de uma revista tão prestigiada publicar “junk-science” (ciência-lixo) e sugerindo que o trabalho seja excluído da base de dados da FCT.

Os autores do estudo publicaram na mesma revista uma resposta aos críticos comentando ponto a ponto as críticas listadas na supracitada carta e em diversas outras de semelhante teor e mesmo destinatário. A leitura das duas cartas é muito instrutiva, vale a pena, se você tiver tempo.

Cabo de guerra 2
A publicação do estudo levou a um disputado cabo de guerra entre críticos e defensores dos transgênicos. Pesquisadores ligados ao Alto Conselho das Biotecnologias na França enviaram carta ao periódico reivindicando a retirada do artigo. Os autores do estudo publicaram na mesma revista uma resposta comentando ponto a ponto as críticas feitas. (imagem: Wikimedia Commos)

Os signatários da referida carta pertencem a uma constelação de instituições que incluem universidades, fundações, empresas e associações de biotecnologia. A lista cumpre a contento seu objetivo de impressionar jornalistas apressados e cidadãos comuns que não têm meios de verificar as filiações ou tempo de fuçar no Google para verificar quem é quem, quem está aposentado ou ativo e quem tem conflito de interesse na matéria.

 

Transparência e legitimidade

Pois é em ocasiões assim que valorizo a transparência associada à atividade científica. É impiedosa, mas tem lá suas vantagens. Você pode se gabar à vontade na hora do café, mas qualquer um pode checar na web, em alguns segundos, quem você de fato é, o que publicou, onde, quando, com que verbas e o impacto que isso teve (ou não) sobre seu ramo de atividade.

O número de trabalhos publicados é importante, mas o de citações é o que mede a importância e relevância que os colegas de profissão atribuem ao que você produziu. Uma das bases de dados mais interessantes para esse tipo de busca é o Web of Knowledge, do Instituto para Informação Científica (ISI, na sigla em inglês), que compila a produção científica em revistas indexadas, portanto, de ampla circulação, e as citações que cada autor obteve, inclusive com gráficos ilustrando a evolução temporal das mesmas.

O chato é que não é um serviço gratuito. O legal é que todas as instituições federais de ensino do Brasil têm acesso a essa base, entre outras, graças a uma hábil negociação de nosso governo com o ISI, resultando em condições vantajosas para a prestação do serviço. Há também utilíssimas bases brasileiras de produção bibliográfica, entre elas o Portal de Periódicos da Capes, a base Scielo e a plataforma Lattes, as duas últimas do CNPq, de acesso universal e gratuito.

O Web of Knowledge traz um indicador numérico chamado ‘índice H’, que é uma espécie de média de desempenho acumulado dos autores de publicações científicas. Como todo indicador, tem suas limitações, mas ainda assim é o terror dos preguiçosos e falastrões.

Os dois responsáveis pelo Comitê Econômico, Ético e Social do HCB francês têm indíces H de 0 e 6; o professor Séralini tem índice H de 17

Entre os signatários da carta à FCT desbancando o trabalho do professor Séralini, você encontrará dois cientistas brasileiros, um com índice H de 6 e o outro de 0 – por coincidência, os mesmos índices dos dois responsáveis pelo Comitê Econômico, Ético e Social do HCB francês. O professor Séralini tem índice H de 17.

Como ilustração das limitações do referido índice, este modesto colunista tem índice H de 23, embora publique em um assunto que gera muitíssimo menos Ibope que os efeitos sanitários de transgênicos, estudados pelo professor Séralini.

Mas vamos combinar, não é mérito nenhum. Difícil é ter índice H de 17 mesmo com um Doberman pendurado em cada carótida.


Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro