Antes fosse apenas um jogo

Ter o prazer de ir a um estádio para ver a arte em movimento de Garrincha, Pelé, Didi, Nilton Santos, Zico, Sócrates e do recém-aposentado Ronaldo é algo incomparável. Contudo, muitos entusiastas do futebol preferem assistir aos jogos no conforto de suas casas, pois os estádios têm se tornado campos de batalha e palco de violência. 

O comportamento agressivo é amplamente utilizado por animais para a sua defesa e a de sua prole, na disputa por fêmeas, na busca por alimentos e para a manutenção da hierarquia social. Mas os motivos pelos quais pessoas aparentemente pacíficas se tornam capazes de agredir, e até mesmo matar, torcedores rivais são ainda objeto de muitas especulações e pesquisas.

O estresse cotidiano, associado à ilusão de poder – decorrente da presença dos indivíduos em meio à multidão – contribui, mas não é suficiente para explicar os comportamentos violentos em nossos estádios. O uso abusivo de bebidas alcoólicas também colabora para que a situação se agrave, mas também está longe de explicar a questão.

Infelizmente, os jogos de futebol não são a arena exclusiva da agressividade humana. Pesquisas indicam um aumento nos níveis de agressividade, em geral, na sociedade. Segundo relatório de 2002 da Organização Mundial da Saúde, a violência é o principal problema mundial de saúde pública. 

Segundo relatório de 2002 da Organização Mundial da Saúde, a violência é o principal problema mundial de saúde pública

Outra evidência: estudo recém-divulgado sobre a violência no Brasil, conduzido pelo Ministério da Justiça em colaboração com o Instituto Sangari, mostra que o número de mortes violentas já superou o de mortes causadas por doenças infecciosas na população jovem. 

Estudar a agressividade é uma tarefa complicada, pois envolve diversos fatores. De um lado, uma série de pesquisas evidencia a relação entre ambiente social e comportamentos violentos. Crianças de famílias em que comportamentos abusivos são frequentes, têm mais chances de apresentar condutas antissociais e se tornar pais pouco comprometidos com a criação dos filhos. É criado, assim, o ciclo da violência.

 

Fatores biológicos

De outro lado, há também dados científicos mostrando que componentes biológicos podem influenciar comportamentos violentos. Entender essa influência em seres humanos tornou-se uma questão de grande interesse para a genética atual.

Fatores genéticos têm sido associados a comportamentos violentos nos homens. Isso explicaria algumas estatísticas. Nos Estados Unidos, por exemplo, pesquisas mostram que indivíduos do sexo masculino são responsáveis por dez vezes mais assassinatos que as mulheres, além de estarem envolvidos, cinco vezes mais, em outros tipos de crimes. Outro estudo, envolvendo 1.000 pessoas, mostrou que eles têm cerca de 2,4 vezes mais chances de apresentar comportamentos antissociais do que elas.

Pelo menos 16 genes são conhecidos por seu envolvimento em algum aspecto do comportamento agressivo

Atualmente, pelo menos 16 genes são conhecidos por seu envolvimento em algum aspecto do comportamento agressivo. Embora esteja claro que nenhum deles controla diretamente a agressividade, pesquisas indicam que os genes associados à produção, regulação e atuação de diversos neurotransmissores cerebrais influenciam o comportamento emocional e, portanto, as manifestações agressivas.  

Estímulos aplicados nas regiões cerebrais conhecidas como hipotálamo, amígdala e córtex pré-frontal levam à expressão de comportamentos agressivos em animais, inclusive no ser humano. Por outro lado, lesões nesses locais podem tornar os indivíduos menos agressivos. Pesquisas indicam que o comportamento agressivo associado a essas áreas cerebrais deve-se a interações dos neurotransmissores vasopressina e serotonina nesses locais.

Serotonina
A serotonina está associada a comportamentos agressivos em diversas espécies. (foto: Wikimedia Commons)

A serotonina tem sido foco recente de várias pesquisas. Esse neurotransmissor, que desempenha um papel essencial no desenvolvimento cerebral, está comprovadamente associado a comportamentos agressivos em humanos, mamíferos, aves, peixes e crustáceos. 

A atuação da serotonina no cérebro depende de três mecanismos diferentes: sua síntese e degradação, sua reutilização ou recaptação nas regiões de comunicação entre neurônios ou entre eles e outras células (fendas sinápticas) e a capacidade de as células-alvo se ligarem à serotonina.

Evidências clínicas indicam que uma maior impulsividade, agressividade e tendência ao autoflagelo e suicídio está associada a deficiências na atividade da serotonina, que podem estar relacionadas à falha em algum dos mecanismos mencionados. 

 

Os hormônios em cena

Estudos com animais revelam que a testosterona, hormônio sexual masculino, com uma forte influência sobre o desenvolvimento embrionário, também está relacionado a comportamentos agressivos. 

A exposição a hormônios sexuais masculinos durante o período de desenvolvimento embrionário cerebral de ratos e primatas leva esses animais, independentemente de seu sexo, a exibir comportamentos masculinizados e a apresentar níveis maiores de agressividade.

Em humanos, ainda há controvérsias sobre a associação da testosterona com comportamentos antissociais e violência. No entanto, há relatos de que a exposição de embriões femininos a hormônios masculinos – devido à ingestão materna de drogas, como as progestinas ou o dietilestilbestrol, utilizado no tratamento do câncer – leva a comportamentos masculinizados, aumento dos níveis de agressividade e da habilidade espacial e até à alteração na preferência sexual das futuras crianças.

Quadro similar é observado em fetos femininos que apresentam hiperplasia adrenal congênita, uma alteração que leva à produção excessiva de hormônios sexuais masculinos nas glândulas adrenais – localizadas acima dos rins. Mais raramente, alterações similares são observadas em meninas que, durante o seu desenvolvimento embrionário, compartilharam o útero materno com gêmeos do sexo oposto.

Interessantemente, em uma pesquisa liderada por Shani Gelstein, do Instituto Weizmann de Ciência, em Israel, e publicada no início de janeiro na revista Science, indicou que nas lágrimas femininas há compostos químicos voláteis ainda desconhecidos que podem diminuir a concentração de testosterona no organismo masculino em quase 15%. Além disso, os resultados obtidos por esses pesquisadores indicam que os homens expostos às lágrimas femininas tornam-se menos agressivos e demonstram menos interesse sexual.

Olho e lágrima
Estudo publicado recentemente na ‘Science’ indica que sinais químicos nas lágrimas femininas tornam homens menos agressivos e diminuem seu interesse sexual. (foto: Lily M.A. Parminter/ CC BY 2.0)

Em diversas espécies animais, a agressão está associada também à produção e liberação de compostos químicos conhecidos como feromônios. Em camundongos, por exemplo, as proteínas urinárias principais (Mups, na sigla em inglês) ativam neurônios sensoriais nas narinas e promovem comportamentos agressivos em machos. Pesquisas posteriores talvez mostrem que os compostos desconhecidos encontrados pela equipe de Gelstein nas lágrimas femininas sejam similares aos feromônios.

Apenas recentemente a ciência parece ter começado a desvendar os mistérios associados ao desencadeamento de atos violentos e à agressividade em seres humanos. Por isso, pretendo continuar, por algum tempo, vendo o espetáculo do futebol no conforto de minha poltrona!

 

Jerry Carvalho Borges
Departamento de Medicina Veterinária
Universidade Federal de Lavras

 

Sugestões para leitura:

Caspi, A. et al. Role of the genotype in the cycle of violence in maltreated children. Science, v. 297, n. 5582, p. 851-854, 2002. 

Craig, I. W. The importance of stress and genetic variation in human aggression. Bioessays, v. 29, n. 3, p. 227-236, 2007. 

Craig, I. W.; Harper, E.; Loat, C. S. The genetic basis for sex differences in human behaviour: role of the sex chromosomes. Annals of Human Genetics, v. 68, Pt 3, p. 269-84, maio 2004.

Gelstein, S. et al. Human tears contain a chemosignal. Science, v. 331, n. 6014, p. 226-230, 6 janeiro 2011.

Moffitt, T. E.; Caspi, A.; Rutter, M.; Silva, P. A. Sex differences in antisocial behaviour: conduct disorder, delinquency and violence in the Dunedin Longitudinal Study. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. 

Popova, N. K. From genes to aggressive behavior: the role of serotonergic system. Bioessays, v. 28, n. 5, p. 495-503, 2006.