Aos trancos e barrancos

Todo santo dia tenho alguma experiência que me remete a dois livros que julgo essenciais para tentar entender nosso país e sua gente. São eles Casa-grande e Senzala, de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda (pai de Chico Buarque). Ambos foram escritos há mais de 70 anos. Vivo recomendando-os a alunos, colegas, amigos. Virei o chato: “Lá vem ele com Casa-grande e Senzala outra vez!”

Mas o que posso fazer se o Brasil da monocultura, da escravidão e do patriarcado, tão bem descrito por Gilberto Freyre, explode todo dia na minha cara, na mídia ou ali na esquina?

Como não pensar, ao ver ou ler o noticiário, em Raízes do Brasil e em sua análise de nossa incapacidade secular de separar o público do privado? Diariamente, notícias de primeira página e flashes no telejornal das oito ilustram o quadro tão bem descrito por Sergio Buarque – a cultura do privilégio e do bacharelismo, o embate entre o Brasil arcaico da aristocracia rural e o Brasil urbano e plural.

Mas o que isso tem a ver com meio ambiente? De novo, tudo.

Lavoura predatória
Raízes do Brasil, escrito em 1936, dedica cinco páginas ao tema “Persistência da lavoura de tipo predatório”. Gilberto Freyre descreve o efeito cascata da monocultura escravocrata sobre o meio ambiente, a dieta e a saúde: redução drástica da biodiversidade, dieta pobre e monótona, desnutrição, nanismo.

Claro, latifundiários se dedicavam a produzir açúcar e café, não a criar galinhas ou plantar couve. O autor, ao pesquisar a correspondência dos diplomatas estrangeiros instalados em capitais do Brasil colônia, descobre o seu pavor diante da necessidade de receber e alimentar convidados ilustres: conseguir um peixe, alguns ovos e uma verdura de aspecto duvidoso exigia dezenas de escravos-hora.

Floresta derrubada para a criação de gado no Mato Grosso, estado que responde por metade do desmatamento na Amazônia (foto: Leonardo Freitas).

Corte rápido para 2009. As prateleiras dos supermercados do Sudeste estão abarrotadas. Ninguém reclama dos canapés servidos nas embaixadas. Mas no Centro-oeste, no lugar da cana e do café, reinam agora o boi e a soja. Denúncias de trabalho escravo pipocam em todo canto, inclusive nos estados mais ricos da federação. Milhões de brasileiros ainda têm uma dieta de pouca farinha e nenhum charque.

Os arrozeiros de Roraima, já instalados em terras de titularidade duvidosa, invadiram e desmataram terras indígenas limítrofes assim que foi anunciada a criação da reserva Raposa Serra do Sol, como documentado em fotos de satélite datadas (veja “A invasão das monoculturas: o desafio da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol”, na CH 244). Instados a deixar as terras invadidas, armaram uma quizumba jurídica que acabou no Supremo Tribunal Federal (STF) e ameaçaram resistir mesmo após decisão do STF confirmando a remoção.

[Nota de rodapé: Falando em terras, está no prelo o livro Direito à terra no Brasil, a gestação do conflito, de Marcia Maria Menendes Motta, que deve sair pela Editora Alameda. A obra nos mostra como a desvirtuação da política de distribuição de sesmarias da Coroa Portuguesa resultou na grilagem em grande escala e no caos fundiário dos dias de hoje.]

Lei do Desastre
E no outro extremo do Brasil, onde supostamente menos se esperaria, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina aprova, por 31 votos a favor e 7 abstenções, um projeto de lei que reduz a faixa de mata ciliar – aquela que cresce à margem dos rios – de 30 metros, como previsto no Código Florestal, para 10 a 5 metros conforme a área da propriedade. Estas matas retêm água, reduzem o assoreamento e, portanto, ajudam a regular o ciclo da água e sobretudo a evitar enchentes, como as que mataram, justamente em Santa Catarina, cerca de 130 pessoas em 2008. Já foi apelidada Lei do Desastre, muito oportunamente.

O Ministério do Meio Ambiente já apontou a inconstitucionalidade dessa lei e afirma que não a reconhecerá. Mais uma ação no Supremo. Isto é ou não é Casa-grande e Senzala e Raízes do Brasil em pleno século 21?

E o Cabral, onde entra nessa história? Bem, seus escribas colocaram, com o famoso “em se plantando tudo dá”, a pedra fundamental do mal entendido ambiental no Brasil. Na primeira operação de marketing em terras brasileiras, e na ânsia de valorizar o achado casual aos olhos da corte, fizeram tal afirmativa antes de tentar plantar o que quer que fosse. Confundiram biodiversidade com fertilidade.

Essa confusão, assim como a do publico com o privado, segue firme e forte.

Brasil, país de todos. (Há controvérsias.) 


Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
17/04/2009