As relativas

Num jornal conservador, O Estado de S. Paulo, a manchete: “Bergoglio é o papa que a América Latina precisa”. Numa reunião de professores de pós-graduação, o trecho de um enunciado: “…com a formação que o candidato chega na pós-graduação”.

Segundo os manuais que circulam sobre língua portuguesa, as duas construções estariam condenadas. As correções seriam “de que precisa” e “com a qual chega na/à pós-graduação”. 

Corte. Vejamos agora uma longa citação:

“Nas orações relativas não se emprega senão ‘que’. Nos casos que, em bom português, reclamam este pronome precedido de preposição, o caipira desloca a partícula, empregando-a no fim da frase com um pronome pessoal.

Exemplos:
A casa em que morei – A casa… que eu morei nela; 
O livro de que falei – O livro… que eu falei dele;
A roupa com que viajava – A rôpa…  que eu viajava cum ela.

Frequentemente se suprimem de tudo a preposição e o pronome pessoal, e diz-se: ‘a casa que eu morei’, ‘o livro que eu falei’, ficando assim a relação apenas subentendida.

Os relativos ‘o qual’, ‘quem’ e ‘cujo’ são, em virtude do processo acima, reduzidos todos a ‘que’:
O cavalo com o qual me viram aquele dia – O cavalo que me viram com ele naquele dia;
A pessoa de quem se falava – A pessoa que se falava dela;
O homem cujas terras comprei – O home que eu comprei as terra dele.

Em Portugal observa-se entre o povo idêntico fenômeno, isto é, essa tendência para a simplificação das fórmulas das orações relativas. Lá, porém, tais casos são apenas frequentes, e aqui constituem a regra absoluta entre os que só se exprimem em dialeto – regra a que se submetem, sem o querer, até as pessoas educadas, quando falam despreocupadamente.

Outra observação: lá, o relativo ‘quem’ precedido de ‘a’ se resolve em ‘lhe’, e aqui só se substitui por ‘pra ele’. Assim, a frase ‘O menino a quem eu dei um livro’ será ‘traduzida’, pelo popular português: ‘o menino que eu lhe dei um livro’; pelo nosso caipira: ‘o minino que eu dei um livro pra ele’.”

A citação é de Amadeu Amaral (O dialeto caipira. São Paulo, Hucitec-INL/MEC, 1982, 4ª edição, p. 78). A primeira edição é de 1920. Dele disse Paulo Duarte que foi o primeiro a estudar sistematicamente o dialeto caipira. (…) Estudá-lo, no entanto, à luz da linguística, analisar as suas deformações, espionar-lhe o vocabulário sistematicamente, investigando-o, perscrutando-o, não passava pela cabeça de ninguém (“Dialeto caipira e língua brasileira”, ibidem, p. 21). Apesar da terminologia discutível (“falar errado”, “deformações”), Duarte se dá conta da importância do trabalho de A. Amaral.

Regular e sistemática

Neste texto, quero mostrar que não se trata de simples deformação (ou de erro), mas que há uma regra na construção das relativas ‘caipiras’, que, como Amaral anotou naquele tempo, estão cada vez mais presentes na fala de pessoas educadas. É só ouvir.

Vou restringir o comentário a uma das relativas então ditas caipiras, que, de fato, não são mais caipiras. Conhecidos ‘analistas’ da língua condenam, por exemplo, slogans como “O óleo que você confia”, dizendo simplesmente que há um erro na construção. A lição que dão se resume a dizer “se você ‘confia EM’, então diga ‘EM que confia’”. Ora, dizer que esta é a regra é apenas um erro de análise.

Nas línguas, é comum que contextos diferentes produzam ou condicionem variações – na fonologia, na morfologia, na sintaxe.

A regra é incrivelmente precisa, seu contexto bem definido e a exigência extrema: é somente quando o ‘objeto’ é anteposto ao verbo e é um pronome relativo que a preposição cai

Por exemplo, dizemos “oito” [oito / oitu], mas dizemos muitas vezes [oitimeia / oitchimeia], em vez de [oito e meia]. Ou seja, eliminamos a vogal final de “oito” e, depois, alçamos ‘e’ para ‘i’. Mas nunca dizemos “oitomeia”. Ou seja, nunca se elimina o ‘e’, que é a segunda das vogais desse encontro, mas sempre a primeira (a regra vale para todos os casos análogos).

Dizemos [oscarros] (os carros), mas dizemos [ozomens] (os homens) e [ozbeques] (os beques). É uma regra: o ‘s’ (que é surdo), em final de palavras, transforma-se em ‘z’ (que é sonoro), se for seguido de uma vogal ou de uma consoante sonora (se for uma vogal, também se reestrutura a sílaba: o.zo.mens).

Outro exemplo: o prefixo in– perde a consoante nasal quando precede uma palavra que começa com nasal (daí ‘imexível’, não ‘inmexível’), com ‘l’ ou com ‘r’ – daí ‘ilegal’ (não ‘inlegal’) e ‘irregular’ (não ‘inregular’). No caso, o contexto modifica um morfema.

Da mesma forma, verbos que exigem uma preposição quando são seguidos de nome ou de pronome não relativo (confio EM Pedro, ele confia EM mim; falei COM o menino, ele falou COMigo), permitem que essa preposição ‘caia’ quando precede um pronome relativo anteposto ao verbo.

Dito de outra forma: a preposição cai (pode cair) se há uma construção relativa, ou seja, se o objeto for ‘que’ ou ‘quem’ etc. Por isso, diz-se frequentemente “que eu falei”, em vez de “DE que(m) falei”, “que eu confio” em vez de “EM que eu confio”.

Observe-se que a regra é incrivelmente precisa, que seu contexto é bem definido, que a exigência é extrema: é somente quando o ‘objeto’ é anteposto ao verbo e é um pronome relativo que a preposição cai.

A preposição não cai, não pode cair, se o objeto for anteposto ‘livremente’, ou seja, se não for um pronome relativo em uma oração adjetiva. Por isso, diz-se “COM ele eu não falo” ou “Eu não falo COM ele”, “DELE eu não quero ouvir nada” ou “Eu não quero ouvir nada DELE”. Mas se diz “menino que eu falei (com ele)”.

O paradigma pode ser apresentado assim (o parêntese assinala termo opcional, que pode ser apagado ou estar presente):
Confio EM Pedro – EM Pedro eu confio – Pedro é um cara (EM) que eu confio
Falei COM o menino – COM o menino eu falo – O menino (COM) que eu falei…

O que garante que se trata de uma regra (isto é, que há uma regularidade) nessas construções é que a mudança é sistemática e é condicionada por um fator objetivo.

Como diria o Conselheiro Acácio, se é regular, há uma regra – ou, se há uma regra, é regular. Em outras palavras, não se trata, tecnicamente, de um erro.

As citações do começo deste texto (do Estadão e da fala de um professor universitário) são uma amostra mínima de um fenômeno cada vez mais comum. Ou seja, é uma estrutura que, cada vez mais, pode ser considerada culta, no sentido que as gramáticas dão a essa palavra. 

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas