Assassinas silenciosas

Nos minutos em que você está lendo este artigo, milhares de células de seu corpo estão se multiplicando ou morrendo e sendo substituídas por outras. Entre elas estão, muitas vezes, assassinas silenciosas que poderiam causar a sua morte. Essas células são responsáveis pelo surgimento do câncer, uma doença que vitima milhões de indivíduos todos os anos no mundo, mas ainda é tratada como tabu pela maioria das pessoas. Compreender a biologia dessas células e as formas de controlar a sua proliferação e disseminação para outros locais de nosso corpo é um dos maiores desafios da medicina atual.

A parte do alto do esquema mostra a divisão celular normal: quando surge alguma anomalia, a célula danificada é eliminada pela apoptose. A parte de baixo do esquema mostra o que ocorre no câncer, quando a divisão de células tumorais é descontrolada (arte: National Cancer Institute).

Nosso corpo é composto por cerca de 10 mil trilhões (10 16 ) de células que surgem de um zigoto, uma célula totipotente capaz de diferenciar-se em todos os tipos celulares de nosso organismo. O segredo do sucesso de um organismo multicelular como o nosso está na convivência harmoniosa e altruísta de suas células. Esse altruísmo envolve, por exemplo, a transferência de nutrientes para outros tipos celulares incapazes de buscar seu próprio alimento, a proteção de outras células contra a ação de microrganismos patogênicos e até a auto-eliminação de células defeituosas por meio da morte celular programada ou apoptose.

Essa delicada engenharia é mantida por dois sistemas de controle capazes de detectar e corrigir erros e eliminar células que não se ajustem ao padrão pré-estabelecido. Intracelularmente, um conjunto de enzimas encarrega-se de analisar e corrigir erros no âmbito do DNA, do RNA e das proteínas. Externamente, pode entrar em ação o sistema imune, para rapidamente eliminar células danificadas.

Todas as nossas células possuem mecanismos que controlam seu ciclo vital e a quantidade de divisões definidas que sofrem durante a sua vida. As células tumorais, porém, são capazes de subverter esse sistema de controle e se multiplicar de forma indefinida, como se fossem imortais.

A transformação de uma célula normal em tumoral depende da ocorrência de mutações em genes associados com o desenvolvimento e a diferenciação celular e com a manutenção da integridade genética. O surgimento do câncer relaciona-se com uma competição entre os tipos celulares normais e as células tumorais por espaço e nutrientes.

Fora de controle
As células cancerosas tornam-se independentes dos sinais inibitórios sobre a sua proliferação produzidos por outras células e do controle interno exercido pela apoptose. Além disso, essas células produzem substâncias que regulam o metabolismo das células vizinhas em seu benefício próprio. Quando ‘escravizadas’, as vizinhas passam a produzir compostos químicos necessários para a subsistência, multiplicação e migração das células cancerosas.

Deste modo, as células transformadas têm acesso, com a formação de novos vasos sangüíneos, a um suprimento de sangue que lhes garante oxigênio, nutrientes e uma via para eliminação de excreções, permitindo o desenvolvimento do tumor. Além disso, essas células desenvolvem um potencial replicativo ilimitado com a expressão contínua de telomerase.

Um dos problemas atuais em relação ao câncer (ou a neoplasia maligna, conforme o denomina a medicina) é a sua detecção precoce. Grande parte das mortes associadas com o câncer ocorre porque o tumor foi descoberto tardiamente, quando ele já estava composto por milhões de células e quando já havia se alastrado por outros locais do organismo, criando uma série de tumores secundários. Esse processo de disseminação das células cancerosas por outros locais do corpo, conhecido como metástase, reduz ou até inviabiliza o emprego de técnicas cirúrgicas, radioterapia ou quimioterapia.

O problema, nesse caso, é que a maioria das pessoas somente procura os médicos quando sentem que algo não vai bem consigo mesmas. Porém, em relação ao câncer, o surgimento de sinais pode ocorrer apenas em uma fase tardia, quando já não é mais possível fazer nada para se evitar as conseqüências funestas da neoplasia.

A busca de substâncias antitumorais é feita a partir do teste de moléculas extraídas de diversas espécies de animais e vegetais, como o abajeru ( Chrysobalanus icaco L. ), acima, do qual pesquisadoras da UFRJ isolaram um composto eficaz contra células cancerosas resistentes a outras drogas (clique na imagem para ler mais a respeito).

Parte do esforço da medicina atual no combate ao câncer se concentra na busca de novas substâncias capazes de inibir ou mesmo impedir o desenvolvimento tumoral. Essas buscas têm levado os cientistas a testarem compostos químicos tirados de seres tão diversos como tubarões, tunicados, esponjas do mar e corais. Tentativas de prospecção de substâncias farmacologicamente ativas contra o câncer também têm sido feitas em plantas e animais habitantes de florestas tropicais como a Mata Atlântica e Amazônia, dois biomas que guardam riquezas imensas ainda inexploradas.

Grande parte das pesquisas sobre compostos com ação antitumoral tem sido feitas com o método de tentativa e erro – os princípios ativos são extraídos de animais, microrganismos e plantas e extratos preparados com eles são testados em células cancerosas mantidas em culturas de laboratório. Os extratos com resultados promissores são então purificados e suas frações são testadas novamente em células cultivadas em laboratório, e aposso depois disso podem ser testadas em animais. Para que ocorram testes com voluntários humanos são necessários vários anos de pesquisas criteriosas e muitas vezes frustrantes.

Interação imprevisível
Contudo, muitas substâncias que apresentam uma efetividade em testes de laboratório não demonstram resultados eficazes – ou apresentam efeitos secundários terríveis – em testes com organismos vivos – animais ou mesmo humanos. Isso se deve à imensa complexidade de nosso organismo, que faz com que esses compostos interajam com as células cancerosas de forma totalmente imprevisível.

Devido à dificuldade para se selecionar quais compostos devem ser testados, os cientistas em busca de substâncias promissoras para o combate ao câncer muitas vezes se apóiam no conhecimento e na medicina popular. Dessa forma, plantas conhecidas pelo povo por sua atuação contra tumores podem fornecer pistas valiosas para que possamos descobrir modos de se combater o câncer.

O grande problema em relação ao câncer é que suas células, originalmente similares aos nossos tipos celulares normais, não apresentam muitos indícios que capacitem nossos mecanismos de defesa para agirem de forma eficiente. Por isso, os métodos de tratamento desses tumores têm tentado buscar características únicas dessas células – como a sua maior capacidade proliferativa ou a liberação de compostos que ativam a formação de novos vasos sangüíneos ou angiogênese.

Células de câncer de mama destacadas com corante (foto: Wikimedia Commons).

Evitar a angiogênese significa impedir que um suprimento essencial para a manutenção da vida de qualquer célula alcance o tumor. O oxigênio, um gás explosivo e corrosivo inalado em cada uma de nossas 23 mil inspirações diárias, é empregado em nossas reações metabólicas e em nossa produção de energia e é um fator chave para o surgimento do câncer.

A liberação de radicais livres provenientes do metabolismo envolvendo o oxigênio é um dos fatores responsáveis pelo surgimento do câncer. Esses radicais livres causam danos às nossas células – principalmente ao seu DNA – e por isso estão associados ao envelhecimento e ao surgimento do câncer. O fumo e a exposição excessiva às radiações solares podem acelerar a produção desses radicais livres.

O combate aos efeitos nocivos dos radicais livres é, contudo, mais simples do que se possa pensar: a opção por um modo de vida saudável com a prática freqüente de atividades físicas, menos estresse, supressão da exposição a fatores cancerígenos como o fumo e uma alimentação saudável, rica em frutas e verduras diminui as chances de sermos vitimas de vários tipos de câncer. Porém, essas atividades preventivas somente surtem efeito se forem implementadas de forma duradoura antes que os efeitos danosos dos radicais livres se façam sentir. Depois disso, será tarde demais…

Novas terapias
Uma das maneiras recentemente testadas para se combater ao câncer é a terapia gênica. Esse processo, ainda em pesquisas iniciais, procura inibir a multiplicação e disseminação das células cancerosas. As armas empregadas nesse tipo de tratamento são vírus modificados contendo genes capazes de destruir células que se multipliquem rapidamente, como é o caso das células tumorais. Para se evitar que esses vírus se percam no organismo ou que atuem sobre outros tecidos, colocam-se esses vetores em uma cápsula ‘endereçada’ para as imediações dos tumores.

Outra possibilidade testada pelos cientistas é a possibilidade auxiliar o sistema imune dos pacientes a combater o câncer destruindo as células tumorais. Esse processo envolve a aplicação de ‘vacinas’ compostas por células cancerosas debilitadas ou de partes destas para que o sistema imune dos pacientes possa aprender como reconhecê-las de forma mais eficaz.

Embora esses métodos se mostrem efetivos em relação a alguns tipos de câncer, ambos ainda são experimentais e envolvem o teste em voluntários que muitas vezes têm um prognóstico ruim em relação ao câncer. Apesar dos estudos com terapia gênica e vacinas anticâncer ainda estarem em estágio inicial, pode ser que esses métodos, aliados ao desenvolvimento de formas eficazes de diagnóstico precoce, representem uma esperança para que tenhamos daqui a alguns anos novas formas de combater o câncer que evitem muito sofrimento e a perda prematura de vidas.

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
08/10/2007

SUGESTÕES PARA LEITURA
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