Assim caminha a humanidade

A Sony é uma das empresas que desenvolvem estudos sobre robôs humanóides. Este é o robô Qrio. 

A última notícia sobre neurorrobótica é a criação da associação Humaine – sigla em inglês para “interação homem-máquina sobre emoções”. O objetivo dessa rede, idealizada por pesquisadores europeus, americanos e israelenses, é desenvolver robôs humanóides capazes de interpretar e realizar expressões emocionais do rosto e do corpo em geral.

Tentativas de criar robôs humanóides não são novidade: já existem vários protótipos construídos por empresas como a Sony, a Honda e outras. São aquelas figurinhas engraçadas que andam, desviam de obstáculos, estendem os braços, emitem frases gravadas e outras gaiatices. Ocorre que, para o funcionamento inteligente dessas criaturas, ajuda muito conhecer com detalhes os circuitos neurais responsáveis pelas principais funções que elas se propõem a realizar, a começar pela locomoção. Desse modo, os neuroengenheiros podem conceber os robôs como réplicas da natureza, imitando as soluções de comando e controle empregadas pelo sistema nervoso.

A locomoção é a primeira função que um robô humanóide deve ser capaz de realizar. E não se trata apenas de alternar o movimento das pernas propelindo o corpo adiante: o andróide precisa saber evitar obstáculos, evitar quedas, fazer curvas, subir planos inclinados e escadas, correr, andar em marcha-a-ré etc.

Até meados do século 20 acreditava-se que a locomoção era possibilitada por uma seqüência de reflexos originados de algum estímulo ambiental – no pé, por exemplo – rapidamente conduzido à medula espinhal dentro da coluna vertebral. Na medula, os neurônios locais modificariam a informação vinda de fora, e gerariam um comando enviado de volta aos músculos da perna para que o indivíduo a movesse de modo adequado. E a seqüência se repetiria sucessivamente, sempre na dependência do contato dos pés com o solo, que provocaria novo ciclo de reflexos.

O nado da lampreia

O estudo do nado da lampreia marinha trouxe avanços significativos para a compreensão dos circuitos
da locomoção (foto: Benjamin Simmons).

Esse conceito de seqüência de reflexos foi superado pelas pesquisas de um neurocientista sueco do Instituto Nobel de Neurofisiologia, Sten Grillner. Ele utilizou um vertebrado aquático muito simples parecido com uma serpente, a lampreia, cuja locomoção é como um nado ondulante. Grillner descobriu os circuitos neuronais da medula espinhal da lampreia responsáveis pelo nado do animal. E não só isso, descobriu que esses circuitos são osciladores naturais, isto é, geram um ritmo automático muito bem coordenado, capaz de ativar os músculos certos na hora certa e, assim, possibilitar o movimento ondulatório do corpo da lampreia que a propulsiona para a frente.

Os estudos de Grillner com a lampreia estimularam outros pesquisadores a empregar vertebrados superiores, como os roedores, o que provocou um grande avanço que hoje vem sendo aproveitado pelos neuroengenheiros construtores de robôs. Tornaram-se então conhecidos os circuitos cerebrais geradores de padrões rítmicos , conhecidos pela sigla em inglês CPGs. Esses circuitos são compostos por neurônios osciladores, isto é, que disparam impulsos nervosos em salvas intervaladas, gerando ciclos de estimulação de conjuntos determinados de músculos, acompanhados pela inibição de outros, alternada e sincronizadamente.

Para andar, por exemplo, é preciso flexionar uma das pernas para tirá-la do chão, e ao mesmo tempo enrijecer a outra para sustentar o corpo; depois é preciso estender à frente a perna que saiu do chão, e deixá-la pisar no solo novamente. A seqüência se repete no lado oposto do corpo, e depois outras vezes em seqüência. Os CPGs da locomoção situam-se na medula, de onde comandam os movimentos das nossas pernas, essenciais na locomoção bípede, e também dos braços, que acompanham a oscilação para ajudar o equilíbrio corporal.

Parece simples, não é? Mas subitamente precisamos parar de andar em linha reta, e decidimos girar à esquerda e, digamos, saltar para uma plataforma situada em plano mais abaixo do solo. Aí muda todo o programa rítmico. Os músculos do tronco devem girar o corpo, e agora as duas pernas devem impulsionar simultaneamente o corpo. Outros CPGs entram em ação, modulados pelas informações provenientes do córtex cerebral que decidiu mudar o trajeto de repente.

Circuitos padronizados
O estado-da-arte no conhecimento da estrutura e função dos CPGs da locomoção está bastante avançado: conhecem-se os neurônios, suas interações, quais mecanismos moleculares eles empregam, como processam as informações, como são modulados pelas regiões superiores do sistema nervoso central.

O que os neurocientistas também descobriram nesses estudos é que o sistema nervoso apresenta circuitos padronizados para muitos movimentos desse tipo – não apenas os da marcha comum. No caso dos cavalos, por exemplo, existem CPGs específicos para marcha, trote e galope, gerando seqüências de ativação muscular completamente diferentes umas das outras.

Esses circuitos compõem um repertório de movimentos rítmicos de que dispomos e sobre os quais podemos impingir a força de nossa vontade para modificá-los de acordo com as circunstâncias. E mais: os circuitos geradores de ritmos não operam apenas para a locomoção: trabalham também no controle da respiração, um ritmo que nos acompanha desde que nascemos até quando expiramos – literalmente! E ainda na deglutição, na tosse e no espirro, e até em funções rítmicas mais complexas ligadas à memória e às emoções.

O desafio dos neuroengenheiros não é mais construir robôs capazes de se locomover de vários modos – para isso, bastaria dotá-los dos CPGs apropriados. A etapa que se segue é capacitá-los a modificar o padrão motor de acordo com as exigências do ambiente que muda a cada momento.

Recuperação de lesões medulares

Paciente no início do treinamento em esteira (no alto), e após o treinamento (na seqüência de baixo). Fotos reproduzidas do artigo de Behrman e colaboradores citado ao final.

A descoberta dos CPGs criou também uma alternativa terapêutica interessante para pacientes com lesões medulares parciais, geralmente causadas por traumatismos. É possível treinar os CPGs remanescentes, simplesmente estimulando esses pacientes – inicialmente paraplégicos – a caminhar em uma esteira.

Essa é a proposta do grupo de Andrea Behrman, fisioterapeuta da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, que relata resultados surpreendentes “ensinando” CPGs de paraplégicos a gerar o controle rítmico da locomoção perdida após a lesão. Os resultados indicam que muitos recuperam a capacidade de andar com ajuda de bengalas ou andadores, ou mesmo sem esses coadjuvantes.

Está próxima a época em que de fato veremos robôs humanóides ajudando-nos nas atividades do dia-a-dia em casa: varrendo o chão, acendendo as luzes, lavando as paredes, fazendo-nos massagens nos pés… E muito mais: é só dar braços, pernas e CPGs aos andróides – e asas à imaginação!

SUGESTÕES PARA LEITURA
A.L. Behrman e colaboradores (2005) Locomotor training progression and outcomes after incomplete spinal cord injury. Physical Therapy , vol. 85, pp. 1356-1371.
S. Grillner (2006) Biological pattern generation: The cellular and computational logic of networks in motion. Neuron , vol. 52, pp. 751-766.
O. Kiehn (2006) Locomotor circuits in the mammalian spinal cord. Annual Reviews of Neuroscience , vol. 29, pp.279-306.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
29/06/2007