O poeta matogrossense Manoel de Barros escreveu uma vez esta maravilha: “As coisas que não existem são mais bonitas.” Um exemplar elogio à fantasia e à invenção. A frase me veio à mente ao considerar como é instigante, e ao mesmo tempo difícil, o trabalho dos paleoantropólogos no esforço para decifrar as origens da humanidade.
Quem se interessa muito por ciência – e também quem se interessa pouco – deve ter acompanhado a grande repercussão que teve a publicação de uma série de artigos em um dos últimos números da revista norte-americana Science sobre os fósseis da espécie hominínea Ardipithecus ramidus, encontrados na Etiópia a partir de meados da década de 1990. Foram pedaços de crânio, pelve, braços e pés de 36 indivíduos que viveram na África há cerca de 4,5 milhões de anos.
Os paleoantropólogos que publicaram os artigos formaram uma grande equipe multinacional liderada por Tim White, da Universidade da Califórnia em Berkeley, e G. Owen Lovejoy, da Universidade Estadual Kent, em Ohio, ambas nos Estados Unidos. Eles estudaram detalhadamente esses fósseis, que foram mapeados por meio de imagens tomográficas e “reconstruídos” utilizando computação gráfica. Além dos fósseis ósseos e dentários disponíveis, o grupo analisou os fósseis vegetais encontrados próximos a eles e os de outros animais de mesma datação, para relacionar os achados com a geografia da região naquela época.
Resultou desse enorme trabalho o melhor exemplo de inventividade e imaginação que muitos pensam que a ciência não tem, mas que na verdade são características que estão na sua essência criativa.
Os seres humanos evoluíram dos chimpanzés?
Considerados mais “pés-na-terra” que os paleoantropólogos são os biólogos comparativos (geneticistas, anatomistas, fisiologistas, psicólogos e outros especialistas). Nem por isso, entretanto, o trabalho destes é mais legítimo ou correto do que o dos primeiros. São complementares. Exemplo flagrante disso é a tese de que “o homem descenderia de um grande símio similar ao chimpanzé de hoje”, que muitos cientistas e leigos se acostumaram a aceitar, por derivação dos dados da biologia comparativa. Pior que isso é o conceito absolutamente errôneo de que “o homem descende do chimpanzé”, que vigora em alguns círculos leigos.
A tese se baseia no estudo das características moleculares e anatômicas, cerebrais e mentais dos grandes símios atuais em comparação com as dos seres humanos. As técnicas recentes de biologia molecular revelaram que nosso genoma tem mais de 99% de semelhança com o do chimpanzé. Os seres humanos são bípedes; os grandes símios (ou monos), embora possam manter-se de pé, locomovem-se apoiados nos nódulos dos dedos das mãos (nodopedalia) e suspendem-se na vertical agarrando-se aos galhos das árvores: são bípedes ocasionais, mas não usam essa postura para se locomover.
O cérebro dos monos tem massa 3 a 4 vezes menor que a do cérebro humano (cerca de 400g, contra nossas 1.400g). Seu número estimativo de neurônios está em torno de 20 bilhões, enquanto nós temos 86 bilhões em média – quantidade determinada experimentalmente no meu instituto pelo aluno de mestrado Frederico Azevedo. Apesar das diferenças quantitativas, há muitas semelhanças entre o cérebro do chimpanzé e o cérebro humano: ambos têm uma arquitetura semelhante de giros e sulcos, assimetrias similares entre o hemisfério direito e o esquerdo, e uma proporção de cerca de 40% ocupada pelas regiões do lobo frontal envolvidas com as funções cognitivas mais complexas.
As diferenças ultrapassam as semelhanças
Entretanto, as semelhanças entre os chimpanzés e os seres humanos não escondem as suas diferenças, que são enormes. A linguagem é rudimentar em nossos parentes antropoides; sua capacidade de aprendizagem por observação e imitação não ultrapassa a de uma criança pequena; sua habilidade de intuir o comportamento de terceiros pela observação do olhar e dos gestos é mínima, incomparável com a nossa (embora erremos muito nesse quesito…). Há também controvérsias sobre a capacidade de os monos se reconhecerem ao espelho, como nós fazemos com tanta vaidade.
Acima de tudo, a organização social humana dominou a Terra, não se sabe se para o bem ou para o mal. Mas o fato é que nos tornamos capazes de construir uma sociedade complexa, cooperativa e altamente sofisticada, ao contrário dos grandes símios, organizados em grupos sociais comparativamente rudimentares. Também superamos muito a capacidade tosca dos nossos parentes antropoides de fabricar ferramentas e instrumentos de uso manual. Extrapolamos essa habilidade, e dispomos hoje de tecnologias de altíssima sofisticação, inimagináveis em qualquer outro grupo animal conhecido.
Em suma, a distância cognitiva que nos separa dos chimpanzés é tão enorme que, se a nossa origem estivesse neles, restaria ainda inexplicável a trajetória percorrida, isto é, o caminho que a evolução teria imposto aos hominíneos há 6-7 milhões de anos e que os levou à perda dos pelos do corpo, ao aumento do tamanho do cérebro, ao bipedalismo e à construção da civilização que hoje conhecemos.
A virada dos paleoantropólogos
O trabalho inventivo da equipe de Tim White e G. Owen Lovejoy mudou o cenário. Não, os seres humanos não se originaram de criaturas semelhantes aos chimpanzés.
Tudo teria começado há cerca de 18 milhões de anos, quando viveu o grande ancestral comum dos grandes símios: um quadrúpede com longos braços e sem cauda, inferido ao estilo Manoel de Barros com base nas evidências fósseis de animais mais recentes. O primeiro ramo (clado, em linguagem técnica) a divergir desse ancestral comum foi o dos orangotangos (Pongo). Seguiu-se a ele o dos gorilas (Gorilla) e o dos chimpanzés (Pan). Só que cada um desses grupos continuou a evoluir ao longo dos milhões de anos seguintes, e as características dos animais atuais dificilmente reproduzem exatamente as de seus ancestrais.
O Ardipithecus ramidus seria um ramo posterior, surgido há quase 5 milhões de anos na África equatorial. Esses animais tinham entre 30 e 50 kg e braços relativamente curtos, embora mais longos que os nossos. Além disso, apresentavam postura bípede ocasional e um cérebro equivalente ao de um chimpanzé atual. Tudo indica que já eram capazes de empregar pedras para quebrar sementes.
O ramo seguinte é bem conhecido: Australopithecus, que tem muitos fósseis coletados e várias espécies descritas. Os australopitecos viveram entre 4 e 1 milhões de anos atrás. Seus braços já eram proporcionalmente menores e a postura mais consistentemente bípede. Seu cérebro maior (400-500 g) foi capaz de permitir o desenvolvimento das primeiras ferramentas de pedra lascada.
Por fim, surgiu o ramo dos ancestrais humanos diretos (Homo), há 2,5 milhões de anos. Esse grupo resultou – lá pelos 200 mil anos antes da era atual – na espécie Homo sapiens, como egocentricamente nos designamos.
O grupo de pesquisadores que publicou os trabalhos sobre os Ardipithecus mostrou (mais uma vez!) que cada espécie, fóssil ou atual, tem a sua própria evolução, paralela ou divergente, ou então simplesmente diferente. E que não se pode ser simplista demais, achando que a nossa espécie derivou de um ancestral símio parecido com o chimpanzé (raciocínio derivado da similaridade genética). Muito menos – como pensam os leigos em geral – que uma espécie atual deriva de outra espécie atual. Os dados da biologia comparada devem ser analisados com cuidado!
Não depreciemos os paleoantropólogos porque eles especulam. Na ausência de evidências diretas além dos fósseis dos tecidos rígidos, eles criam verdades sobre o que inexiste. Como Manoel de Barros, eu diria que isso pode ser mais bonito e verdadeiro que o contrário.
*Meus agradecimentos a Walter Neves pelos comentários críticos à primeira versão deste artigo.
SUGESTÕES PARA LEITURA
W.A. Neves (2006) E no princípio…era o macaco! Estudos Avançados, vol. 20: pp.249-285.
M. Barros (2007) O Livro das Ignorãças (13ª edição). Editora Record, 103 pp.
F.C.A. Azevedo e colaboradores (2009) Equal numbers of neuronal and nonneuronal cells make the human brain an isometrically scaled-up primate brain. Journal of Comparative Neurology, vol. 513: pp.532-541.
G. Suwa e colaboradores (2009) The Ardipithecus ramidus skull and its implications for hominid origins. Science, vol. 326: pp.68e1-68e7.
C. Owen Lovejoy e colaboradores (2009) The great divides: Ardipithecus ramidus reveals the postcrania of our last common ancestors with African apes. Science, vol. 326: pp.100-106.
Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
03/11/2009