A bioeletricidade é a parte da ciência que trata de fenômenos elétricos em sistemas biológicos, seja devido a campos elétricos endógenos, originados no interior dos seres vivos, ou a campos externos. Não confundir com o termo homônimo, usado atualmente para fazer referência à geração de eletricidade por meio do biogás. Poderíamos tratar aqui do bioeletromagnetismo, que inclui fenômenos magnéticos e ópticos. Mas o tema é abrangente demais para caber no espaço destinado à coluna.
A história da bioeletricidade remonta ao final do século 18, quando o médico italiano Luigi Galvani (1737-1798) realizou seus famosos experimentos, com os quais observou contrações musculares em pernas de sapo, induzidas pela ação de uma descarga elétrica.
Estudos similares no nível celular só apareceram um século depois, por volta de 1889, quando surgiram indícios de que células podiam se locomover sob a ação de um campo elétrico externo. Todavia, a limitação dos recursos tecnológicos dificultava a observação de pequenos campos elétricos em seres vivos, o que resultou na falta de interesse pela bioeletricidade por parte de biologistas e médicos. Além disso, o termo foi logo associado a duvidosos instrumentos terapêuticos.
A área começou a ser bem aceita no meio científico quando, por volta de 1937, o anatomista norte-americano Harold Saxton Burr (1889-1973) desenvolveu equipamentos sofisticados, capazes de medir voltagens em sistemas biológicos na faixa de milivolts. Mas a grande revolução da bioeletricidade se deu nos anos 1960, com o uso de corantes funcionais, que permitiram a observação de eventos celulares por meio do microscópio de fluorescência.
Condutividade elétrica em meio líquido
Apesar de todo o avanço tecnológico, experimentos em biologia celular continuam desafiando a inteligência humana, não sendo surpresa, portanto, a inexistência de uma teoria universalmente aceita para os mecanismos responsáveis pela bioeletricidade. São muitas varáveis em jogo, e a abordagem de cada uma delas dá origem a uma possível teoria.
Veja abaixo resposta de células humanas à ação de pulsos elétricos
(vídeo: Nikolić N, Skaret Bakke S, Tranheim Kase E, Rudberg I, Flo Halle I, Rustan A, Thoresen G, Aas V)
Na essência, o fenômeno é simples: trata-se de condutividade elétrica em meio líquido, onde deve valer a lei de Ohm, que se aprende na física do ensino médio. A dificuldade começa a aparecer quando se deseja saber quais as fontes de campo elétrico nos seres vivos e quais são exatamente os portadores de carga nos diferentes fenômenos bioelétricos conhecidos.
Sabemos o grosso da história, mas restam dúvidas quanto aos detalhes. Íons de cálcio, potássio e sódio são candidatos óbvios ao papel de portadores de carga. Mas a confusão é grande quando se trata da fonte de campo – e são tantas as teorias, que tratar de uma ou outra seria injusto para com as que ficassem de fora.
E não foi por uma nova teoria, ou confirmação experimental de uma teoria já conhecida, que o assunto entrou na ordem do dia. Foi graças à observação de um fenômeno até então inédito: um comportamento celular coletivo sob o efeito de campos elétricos, similar ao movimento de cardumes ou de pássaros.
Migração celular coletiva
De acordo com Nir Gov, em comentário publicado na edição de abril da revista Nature Materials, a migração celular coletiva é um dos dez mais importantes problemas não resolvidos na biologia celular. Os experimentos realizados por Daniel J. Cohen e colaboradores foram publicados no mesmo fascículo da revista sob o título ‘Galvanotactic control of collective cell migration in epithelial monolayers’.
O procedimento experimental utilizado é similar a vários outros que estão na literatura. Uma cultura de células MDCK (Madin-Darby Canine Kidney) foi preparada em uma câmara desenhada especificamente para o experimento. Uma fonte de corrente elétrica produz o campo que atua sobre o sistema celular.
O fato de se ter uma fonte de corrente e não uma fonte de voltagem é um dos aspectos inovadores do trabalho. Estudos anteriores mostraram que a corrente, e não o campo elétrico, é responsável pela mobilidade celular. Os pesquisadores fizeram vários ensaios inéditos, todos filmados microscopicamente (os filmes estão disponíveis no material suplementar).
Inicialmente mostraram que as células se movimentavam na direção do campo elétrico. Quando a direção se invertia, o mesmo acontecia com o movimento – o que foi denominado inversão-U. Depois produziram campos elétricos com geometrias que acionavam células em grupos vizinhos, de tal modo que os grupos se moviam na mesma direção ou em direções diferentes.
Em outras palavras, eles conseguiram total controle do movimento celular a partir de determinadas geometrias do campo elétrico. Visualmente o resultado é similar ao controle dos momentos magnéticos de diversos materiais, sob a ação de um campo externo, como é feito nos processos de gravação magnética.
Assista a uma simulação computacional do movimento coletivo de células epiteliais
(vídeo: Sepulveda N, Petitjean L, Cochet O, Grasland-Mongrain E, Silberzan P, Hakim V)
Os pesquisadores ainda não sabem que tipo de aplicação resultará de seus experimentos, mas imaginam que seja possível fazer algo relacionado ao uso de tecidos biológicos como materiais ativos. Ou seja, estes podem desempenhar certas tarefas sob o comando de um campo elétrico. Que tarefas serão essas, só o tempo dirá.
Um aspecto interessante dessa pesquisa é que o campo aplicado é muito menor do que aquele capaz de movimentar uma célula. Então, como é possível observar o movimento celular descrito no trabalho?
Sinalizador de movimento
Uma explicação foi apresentada em artigo publicado na revista Current Biology, em março de 2013. De acordo com os autores do trabalho, coordenado por Greg M. Allen, praticamente toda a corrente elétrica circula em volta da célula, isto é, na membrana externa, que tem resistência elétrica muito menor do que o interior da célula.
Essa membrana é formada por um complexo conjunto de proteínas, lipídios e carboidratos, todos eletricamente carregados. É sobre esse conjunto que age o campo elétrico, mas que elemento exatamente responde mais ou menos à ação do campo ainda é um mistério.
De qualquer modo, acredita-se que algum sinalizador de movimento presente na membrana, altamente negativo, movimente-se conforme o campo externo. Ao passar de uma ponta à outra da célula, ele dispara o mecanismo celular responsável pelo movimento, que no final das contas é quem comanda o movimento da célula.
Como se vê, estamos diante de um complexo e desafiador problema das ciências da vida que requer conhecimentos básicos de eletromagnetismo para sua solução. Cabe saber se estamos formando pesquisadores das ciências da vida bem preparados para enfrentá-lo.
Não sei se a resposta a essa questão tem a ver com o fato de que em apenas cinco universidades brasileiras (UFC, UFRJ, UFSC, UFSCar e USP) temos pesquisadores nessa área com trabalhos registrados na base de dados Web of Science.
Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana