Se alguém ainda acredita na solidariedade natural entre as ditas classes oprimidas, a crença pode ter ido por terra mês passado. Tentando colocar um ponto final em uma disputa iniciada há quase 150 anos, os índios cherokees, dos Estados Unidos, resolveram excluir de sua nação os descendentes de seus escravos negros, argumentando que a eles falta sangue índio.
Conhecendo a opressão e a violência a que ambos índios e negros foram expostos nos Estados Unidos, não seria esta a história que esperaríamos ouvir.
Não foi, pelo menos, o que a historiadora Tiya Miles, professora da Universidade de Michigan e autora do livro Ties that bind: the story of an afro-cherokee family in slavery and freedom (University of California Press, 2005), esperava ver quando começou a estudar o tema.
Ela imaginava que, ao estudar a longa relação entre os índios cherokee e os descendentes de africanos, encontraria histórias de alianças raciais e interculturais entre os dois grupos, ambos resistentes à escravidão e ao colonialismo.
Não podia estar mais errada. Quanto mais estudava o assunto, mais se espantava com as histórias que descobria. Por um lado, eram trajetórias de famílias misturadas, cherokee e africanas. Por outro, ouvia relatos de pessoas que tinham vergonha das origens interraciais de suas famílias e defendiam que, caso essas histórias fossem divulgadas, a própria soberania cherokee estaria ameaçada.
Pacto de igualdade
O caso é bem complicado. Os cherokees são uma tribo indígena originária do sul dos Estados Unidos (região que compreende parte dos atuais estados da Georgia, Carolina do Norte, Carolina do Sul e Tennessee). Desde o século 19, eram tidos pelos colonizadores europeus como uma tribo altamente civilizada, tendo assimilado várias de suas práticas; entre elas, a de ter escravos africanos.
Reconhecidos pelo governo americano como uma tribo soberana, os cherokees não conseguiram, no entanto, permanecer nas suas terras, principalmente depois da descoberta de ouro em parte delas. Em 1830, uma parcela da tribo foi realocada no território onde hoje é Oklahoma. Levaram consigo seus escravos.
Durante a guerra civil que dividiu os Estados Unidos entre 1861 e 1865, os cherokees apoiaram majoritariamente os Confederados, adotando a defesa da escravidão como demonstração de sua distinção social.
Mas, estando do lado daqueles que perderam a guerra, para manter seu status de nação independente dentro do território americano, assinaram, em 1866, um tratado com o governo federal concordando que todos os cherokees libertos e todos os descendentes de africanos que vivessem nas terras da tribo “deveriam ter os mesmos direitos que os nativos”.
Seria difícil ser diferente, mas acabou sendo. Assim como em toda parte onde houve escravidão, também os cherokees casaram e tiveram filhos com seus escravos.
Mesmo assim, em um censo realizado entre 1898 e 1914 com os cidadãos cherokees – que depois veio a ser conhecido como Dawes Roll –, os descendentes de africanos foram listados em separado dos considerados verdadeiros cherokees – aqueles de linhagem e sangue.
Hoje, o Dawes Roll constitui a principal base legal para a Suprema Corte Cherokee decidir pela exclusão dos descendentes de africanos de sua tribo.
Desejo de segregação
Não estamos falando de pouca coisa. A tribo Cherokee, formalmente reconhecida como nação, é a segunda maior dos Estados Unidos e uma das maiores empregadoras do estado de Oklahoma. Sua economia tem grande impacto na região. Seus mais de 290 mil cidadãos têm direitos e benefícios, como seguro saúde e auxílio alimentação.
Como nação independente, os cherokees possuem leis, governo e tribunais próprios. Sua constituição data de 1839. Mas, ao mesmo tempo, são cidadãos americanos e devem obedecer às leis dos Estados Unidos.
Essa situação ambígua só deixa a questão mais complicada. Se os índios cherokees devem obedecer às leis dos Estados Unidos, como podem tomar uma decisão que desrespeita as leis federais do país? A Suprema Corte Americana pode interferir nas decisões da Suprema Corte Cherokee?
Para além da esfera jurídica, qual é a legitimidade política dessa decisão? Seria o movimento de expulsar os descendentes de africanos das tribos indígenas um exercício legítimo de soberania tribal? Para manter sua cultura e ancestralidade comuns, seria mesmo necessário reforçar a impossível linhagem sanguínea?
Ao que parece, entre os cherokees, sim. Em 2007, eles aprovaram uma emenda constitucional estabelecendo que, para continuar sendo índio cherokee, era preciso ser puro-sangue. Foi esta a decisão ratificada pela Suprema Corte Cherokee no mês passado.
Nas cenas dos próximos capítulos, espera-se a ação do governo federal dos Estados Unidos. O Bureau de Indian Affairs, algo como o Departamento de Assuntos Indígenas dos Estados Unidos, afirmou que não serão reconhecidas eleições sem a participação dos afrodescendentes, uma vez que a decisão da Suprema Corte Cherokee e a consequente retirada dos direitos de cidadania desse grupo seria um flagrante desrespeito ao tratado de 1866.
Além de demonstrar a validade da máxima segundo a qual direito de minoria não se decide com voto de maioria, há muito o que aprender com essa discussão. Não é a primeira vez que um grupo étnico utiliza critérios raciais para definir sua própria identidade, mas seria muito bom se fosse a última.
Na época do Dawes Roll, o racismo cientificista corroborava as crenças de gente que achava que não se podia ser indígena e africano ao mesmo tempo. Isso foi há mais de cem anos. Incrível é ver, ainda hoje, que tem quem acredite nisso.
Em tempo
Em boa hora a Caixa Econômica mudou sua propaganda na qual Machado de Assis era representado por um ator branco. Graças à intensa mobilização pública, agora Machado voltou a ser negro. Sinal de mudança dos tempos; nesse caso, para melhor.
Na época de Machado de Assis, também há mais de cem anos, negros, mulatos e simpatizantes até podiam depositar suas poupanças na Caixa, mas jamais teriam conseguido tirar do ar uma propaganda enganosa como essa.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Pós-doutoramento na Universidade de Michigan (bolsista da Capes)