Cancún: um copo meio cheio ou meio vazio?

Há quase uma semana terminou em Cancún, no México, a Convenção das Partes sobre Mudanças Climáticas da ONU, a COP-16. As notícias anteriores ao encontro eram muito pessimistas, ecoando a quase certeza de que se repetiria o fracasso da COP-15 de Copenhague. A proximidade do evento aumentou a frequência e o destaque de notícias sobre o clima, todas ruins.

No Brasil, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou estudo mostrando que nos últimos 70 anos a temperatura na cidade de São Paulo subira de 2 a 3 graus centígrados, enquanto a temperatura média da Terra aumentara 0,4 grau.

É, São Paulo não para de construir, pavimentar e esquentar. Isso modificou o padrão das chuvas. A garoa, pela qual a cidade é famosa, está se tornando um fenômeno tão raro quanto o transporte por ônibus elétrico. Já as tempestades com jeito de fim de mundo viraram rotina.

No front global, a Organização Mundial de Meteorologia divulgou prognóstico segundo o qual os eventos climáticos extremos ocorridos em 2010 – como o inverno severo no hemisfério norte, a onda de calor excepcional na Rússia e as enchentes bíblicas do Paquistão – se tornarão mais frequentes nas décadas vindouras.

2010 foi o ano mais quente desde que se iniciaram os registros em 1850,e isso sem que qualquer fenômeno natural digno de nota pudesse levar aculpa

Confirmou-se também que 2010 foi o ano mais quente desde que se iniciaram os registros em 1850, e isso sem que qualquer fenômeno natural digno de nota pudesse levar a culpa.

Uma empresa de consultoria britânica, a Maplecroft, criou um ranking mundial da susceptibilidade às mudanças climáticas no qual o Brasil ocupa a 81ª posição (em uma lista com 170 países), em condição de “alto risco”. Talvez sim, talvez não.

O Inpe, sempre ele, reviu seus cálculos anteriores sobre o aquecimento na Amazônia até 2100. O aumento previsto passou de 4 a 5 graus.  Mas, calma, a sensação térmica talvez não fique tão ruim assim, já que o mesmo instituto prevê que a floresta vai diminuir e a umidade vai baixar, e muito, com secas rigorosas.

A caatinga, por outro lado, deve mesmo virar mar, só que de areia. Para o Sul e o Sudeste, a previsão é de abundantes enchentes e deslizamentos. Pelo visto, nossas disparidades regionais continuarão de pé, ao contrário de muitas edificações.

Deslizamento no morro da Carioca (RJ)
Vista do morro da Carioca, em Angra dos Reis (RJ), e do deslizamento ocorrido em janeiro deste ano. Segundo previsões do Inpe, as regiões Sul e Sudeste do país continuarão sendo atingidas por essas catástrofes devido ao aquecimento global. (foto: Roosewelt Pinheiro/ABr – CC BY NC 2.5)

Quatro dias antes da abertura da COP-16, mais carvão na fogueira: a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera também bateu recordes históricos. Isso, mesmo com a crise financeira mundial.

A Nasa, por sua vez, divulgou dados de um megaprojeto que mediu a temperatura na superfície de 157 dos maiores lagos do planeta, concluindo que nos últimos 25 anos eles aqueceram em média 0,45 grau por década, e alguns, o dobro disso. Mais uma certeza tecnocrática que se esvai: a água aqueceu mais do que o ar. E para piorar a má notícia, o fenômeno ainda não tem explicação, o que é bastante aborrecido.

Nem todos os projetos de redução de emissões, de todos os paísesjuntos, são suficientes para evitar que a temperatura aumente em maisde dois graus

A própria ONU aproveitou para lembrar que nem todos os projetos de redução de emissões, de todos os países juntos, são suficientes para evitar que a temperatura aumente em mais de dois graus, patamar a partir do qual se acredita que os impactos das mudanças climáticas deixam de ser administráveis, eufemismo polido e politicamente correto para incontroláveis. Ou seja, salve-se quem puder!

Até que, no dia primeiro de dezembro, com a conferência já em curso, em cenário de paraíso tropical, os cientistas apelaram para a ignorância e ironia, divulgando que a subida de um metro no nível do mar, prevista para até o fim do século, acarretaria a destruição, total ou parcial, de pelo menos 149 resorts de luxo do Caribe, assim como de 21 aeroportos e de 35 dos 44 portos da região.

Resort de luxo no Caribe
Segundo dados divulgados na COP-16, o aumento de um metro no nível do mar, previsto para até o fim do século, levaria à destruição, total ou parcial, de pelo menos 149 resorts de luxo do Caribe. (foto: Grand Velas Riviera Maya / CC BY 2.0)

Ah não, agora temos que fazer alguma coisa. De que adianta nos esforçarmos para sugar a seiva do planeta se depois não teremos sequer onde gastar o dinheiro? Por falar em dinheiro, a conta do estrago que a subida do mar causaria, apenas nos 15 maiores países de língua inglesa, seria de 120 bilhões de dólares. Salgado, como o mar, mesmo depois do derretimento de todo aquele gelo polar.

Apesar de todas essas notícias bicho-papão assombrando os delegados da conferência, sua secretária executiva Christiana Figueres, para garantir, invocou na abertura do evento o espírito de Ixchel, a deusa maia da Lua, da razão, da criatividade e da liderança. Boa sacada. Vamos mesmo precisar disso tudo – da Lua não sei, mas do resto, com certeza.

A conferência encerrou-se com um legado modesto, embora melhor que o esperado diante da onda de pessimismo que a precedeu

O resultado da COP-16 vem confirmar isto. A conferência encerrou-se com um legado modesto, embora melhor que o esperado diante da onda de pessimismo que a precedeu. Não matou o protocolo de Quioto, reconheceu que as metas do tratado são modestas demais e progrediu muito na direção da aprovação do sistema de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD), que contará com um fundo para a proteção de florestas tropicais, como as do Brasil e da Indonésia.

Mas o que foi realmente importante nesse período foi o vazamento de milhares de informações até então sigilosas, pelo sítio Wikileaks. Por ele ficamos sabendo que Estados Unidos e China, os maiores emissores do planeta, foram aliados na sabotagem de metas mais ambiciosas de redução de emissões na COP-15. Coisa feia, sô!

Mas ficou claro também que a China está, paradoxalmente, investindo pesado em tecnologias verdes, e que, enquanto não tiver garantido a liderança no setor, não topará metas de redução obrigatórias, só voluntárias.

Naturalmente, essa perspectiva deixa os Estados Unidos de cabelo em pé. Que beleza! Parece que a concorrência e a livre (?) iniciativa vão finalmente servir para alguma coisa que não seja um ecocídio.

Perdoem-me, é que ainda prefiro acreditar em copos meio cheios que meio vazios.

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro