Adolescente, lembro-me de assistir no cinema ao filme Rocky IV. Desde então, sempre me perguntei se não haveria consequências neurológicas permanentes causadas pelos golpes que antecedem o nocaute de um lutador.
Em 1928, Harrison Martland descreveu pela primeira vez sintomas como perda de memória, mudanças de personalidade e alterações motoras semelhantes à doença de Parkinson em ex-boxeadores. O médico americano batizou a doença de demência pugilística, que a partir da década de 1960 ficou conhecida como encefalopatia traumática crônica (ETC).
A ETC é uma doença neurodegenerativa progressiva, causada por repetidos golpes na cabeça. Noventa por cento de todos os casos registrados foram observados em atletas. Jogadores de futebol americano e pugilistas, cujas carreiras foram iniciadas antes dos 19 anos e que desenvolveram suas atividades por cerca de 10 anos seguidos, estão entre as principais vítimas da doença. No caso de boxeadores, 17% dos profissionais aposentados apresentam sintomas de ETC.
Inicialmente, os pacientes se queixam de falta de atenção e perda de memória, juntamente com desorientação e dores de cabeça. Esse sintomas evoluem para episódios de irritabilidade, comportamento violento, confusão mental e disartria. As alterações emocionais e cognitivas associadas à ETC podem levar ao abuso de drogas e suicídio.
Análises por neuroimagem revelaram redução no tamanho do hipocampo, alargamento dos ventrículos, afinamento do corpo caloso, degeneração do tronco encefálico, entre outras alterações neuroanatômicas em pacientes com ETC.
Não há consenso sobre a quantidade ou intensidade de golpes necessários para causar ETC. Sabe-se, entretanto, que o número médio de impactos recebidos por um jogador de futebol americano ao longo de uma única temporada varia entre 420 e 2.492.
A idade é outro fator de risco para o desenvolvimento da ETC. Atletas com carreiras mais duradouras e, portanto, com mais chances de ter recebido pancadas na cabeça, apresentam geralmente formas mais graves de ETC.
Hipótese e associações
Embora a relação entre golpes consecutivos na cabeça e ETC seja um fato, não há consenso sobre os mecanismos celulares que desencadeariam a doença. Estudos recentes sugerem a importância de uma célula conhecida como microglia nesse processo.
A microglia desempenha um papel de defesa imunológica no interior do cérebro. Quando há uma lesão, essas células tornam-se responsáveis por reduzir danos causados por inflamação, promover a limpeza de detritos e reparar o tecido circundante danificado.
No entanto, se o indivíduo sofre lesões múltiplas e continuadas, a microglia não consegue mais desligar seu modo de operação pró-inflamatório, passando a liberar quantidades significativas de mediadores imunológicos capazes de inibir enzimas conhecidas como fosfatases. Dessa forma, promovem a hiperfosforilação da proteína tau, disfunção do citoesqueleto e a formação de emaranhados fibrilares, semelhantes aos observados em pacientes com doença de Alzheimer. (Leia mais sobre os mecanismos por trás do Mal de Alzheimer na coluna ‘Reprogramação campeã‘)
De fato, existe uma relação mais direta entre ECT e Alzheimer. Variações no gene da apolipoproteína E (ApoE), a principal proteína do tipo encontrada no cérebro, aumentam o risco de desenvolvimento da doença de Alzheimer. Aproximadamente 25% da população possui esse polimorfismo genético, conhecido como ApoE4. Análises de genotipagem indicaram a presença de ApoE4 em 50% dos pacientes com ETC.
Outra proteína, a TDP-43, desempenha um papel importante na mediação da resposta celular a lesões do sistema nervoso. A forma patológica de TDP-43 foi originalmente associada à esclerose lateral amiotrófica (ELA). Recentemente, porém, observou-se que TDP-43 anômala está presente em pelo menos 80% dos casos de ETC.
Esses dados corroboram os relatos de que traumatismo craniano parece aumentar em três vezes o risco de ELA. Da mesma forma, 25% dos pacientes com ETC também apresentam sintomas de ELA.
Prevenir é o único remédio
Esforços precisam ser feitos para se informar melhor atletas, treinadores e gestores de esportes em que lesões no crânio são frequentes, tornando-os conscientes das causas e consequências do ETC.
Além de pugilistas e jogadores de futebol americano, há casos bem documentados de ETC em veteranos de guerra, pacientes epilépticos, jogadores de rugby, hockey e lutadores de artes marciais mistas (MMA).
O MMA tem suas raízes no Brasil, e o país se destaca com campeões nas principais categorias. Trata-se do esporte que mais cresceu no mundo nos últimos anos; possui milhões de fãs e atletas muito bem remunerados.
Equipamentos de proteção e regras mais rígidas, capazes de proteger os atletas, são as únicas formas de prevenir o ETC. Para esportes mais tradicionais, como o boxe e o futebol americano, mudanças de regras e a inclusão de novos equipamentos de proteção são iniciativas difíceis de serem implementadas.
No caso do MMA, no entanto, talvez possa ser diferente. É um esporte jovem, cujos primeiros regulamentos foram definidos há somente 12 anos. Equipamentos de proteção poderiam ser recomendados a todos os atletas e obrigatórios para aqueles com muitos anos de octógono ou que apresentassem variantes de ApoE4, de modo a minimizar as consequências das lesões no cérebro desses indivíduos.
Da mesma forma, deveria se considerar o uso preventivo de medicamentos capazes de reduzir beta-amiloide – proteína associada ao Mal de Alzheimer – no cérebro de lutadores que sofrerem concussões durante um combate. Pelo menos em roedores, esse procedimento reduziu significativamente danos neurológicos causados por lesões no crânio.
Somente o esforço conjunto de atletas, dirigentes, cientistas e médicos permitirá o aumento do conhecimento sobre a encefalopatia traumática crônica, permitindo, assim, seu diagnóstico, tratamento e prevenção. Como diria John McCarthy, o mais experiente juiz de MMA: “Let’s get it on!”
Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro