Na coluna de estreia, parece-me adequado dar uma pequena amostra do que aqui se lerá. A coluna não opinará sobre certo e errado – posição francamente dominante quando se trata de língua. No entanto, opinará sobre a correção ou não de certas análises.
Basta ver o ponto da recente polêmica sobre um livro didático: é certo / pode-se dizer ‘os livro’? Para que se veja o tipo de problema que a questão levanta, imagine-se a mesma pergunta feita em outro campo: é certo uma fruta ter sabor amargo ou um pássaro colocar seus ovos no ninho dos outros?
O botânico e o zoólogo sentem-se no direito de rir dessas perguntas ingênuas. A coluna mostrará, eventualmente, que o mesmo tipo de riso faz sentido quando se trata de língua. Em outras palavras, a coluna falará de fatos.
Segue-se uma pequena amostra, composta totalmente por palavras. Antes, porém, uma ressalva: por mais que, quando se fala de língua, o que vem à mente sejam as palavras (escritores eventualmente falam de sua paixão pelas palavras, embora quase sempre se distingam pela sintaxe ou pelo texto), não é verdade que uma língua seja um conjunto de palavras.
O que faz uma língua é sua gramática, vale dizer, as regras que a tornam a língua que ela é. Tanto é assim que palavras podem circular de uma língua a outra, o que dificilmente ocorre com regras. Além disso, quando uma língua recebe palavras de outra, submete-as imediatamente, adapta-as a sua estrutura.
O mesmo fenômeno pode ser verificado quando se criam palavras novas: elas seguem regras velhas. Os estrangeirismos e os neologismos são provas evidentes da força de uma língua, e não um descalabro.
Faxina é uma limpeza especial, periódica. Merece atenção redobrada. Por um lado, seu emprego nesse contexto e com esse sentido tem a ver com o fato de a presidenta ser mulher – não há registro de fatos semelhantes designados da mesma forma se eles são comandados por homens.
Outro aspecto que merece registro é o fato de a palavra ter sido recusada pela presidenta, porque teria uma acepção específica: uma faxina dura pouco (das seis às oito, ela disse), enquanto o combate à corrupção é “ossos do ofício”. Além disso, qualquer consulta mostrará que a palavra foi empregada basicamente pela oposição, tomada em sentido amplo (praticamente toda a imprensa incluída).
Como já se disse, fazer política é fazer dicionários. Em dois sentidos: tenta-se decidir que palavras constarão nele (e quais serão excluídas) e, além disso, tenta-se dar ou impor uma definição.
“Labor”, diz ele, chama atenção para a dimensão extenuante do trabalho. “Se o trabalho é um pêndulo entre criação e servidão, o labor é o pêndulo no seu lado negativo”. De uma tacada só, trata-se agudamente de quatro palavras, nesse agudo dicionário, sendo duas quase sinônimas: ‘labor’ e ‘servidão’.
Entre as oxítonas estão algumas poucas palavras ‘nativas’ (só, está, ali, lá) e outras tantas de origem africana ou indígena (jacaré, cafundó).
Palavras proparoxítonas ‘nativas’ (como abóbora, chácara e xícara, mas também estômago, fósforo, útero etc.) convivem com variantes populares paroxítonas (abobra, chacra e xicra). É possível que essas formas nunca venham a ser palavras cultas.
Não custa lembrar que muitas passaram por esse processo: ‘asinu’ > ‘asno’, ‘littera’ > ‘letra’, ‘regula’ > ‘regra’. Muita gente acha essas formas horríveis, mas não vê problema em dizer ‘abobrinha’, ‘chacrinha’ e ‘xicrinha’. Logo…
Por que ‘inicializar’, perguntam, se a língua já tem ‘iniciar’? Por duas razões: porque se trata de um campo particular, a informática; e porque uma dessas palavras deriva de ‘início’ e outra de ‘inicial’. Ou seria tradução de ‘inicialize’? Pode ser.
Mas essa hipótese não anula o primeiro argumento. E, mesmo assim, pode-se ver o poder da gramática: o verbo é da primeira conjugação e completamente regular, como todos os verbos novos, sejam neologismos ou estrangeirismos.
Para quem emprega entre seis e dez mil durante a vida toda, acaba importando pouco que uma língua tenha 400 mil ou um milhão, embora tais cifras indiquem o peso cultural relativo de uma língua (na verdade, de um ou de alguns povos, ou de seu PIB e de seus caças).
Mas há detalhes: empregar mais ou menos palavras não é apenas uma questão de cultura (livresca). É também uma questão de especialização, profissional, religiosa ou ideológica. Ou até circunstancial.
Às vezes, não é fácil distinguir certos empregos. Por exemplo, ‘gasto’ e ‘investimento’. Uma das diferenças semânticas está relacionada à renda do beneficiário: com pobres se gasta, com ricos (empresas) se investe. Divisão semelhante à descoberta por Renato Janine Ribeiro (há bom tempo) no emprego de ‘sociedade’ e de ‘social’. Referia-se especialmente às ações do governo, ou que o envolvem.
Faça-se o teste: quando a sociedade reclama do governo ou quando ele se reúne com ela, trata-se sempre de poucas pessoas, bem poucas (a sociedade cabe em um restaurante de tamanho médio; ou cabia).
Quando se trata do social, fala-se do povo, dos pobres. Um governo tem sensibilidade social (ou diz que tem) se gasta algum em cestas básicas ou em bolsas. Quando a sociedade acha que gasta um pouco demais com eles, então fala de gastança.
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas