Certas palavras

Na coluna de estreia, parece-me adequado dar uma pequena amostra do que aqui se lerá. A coluna não opinará sobre certo e errado – posição francamente dominante quando se trata de língua. No entanto, opinará sobre a correção ou não de certas análises.

Basta ver o ponto da recente polêmica sobre um livro didático: é certo / pode-se dizer ‘os livro’? Para que se veja o tipo de problema que a questão levanta, imagine-se a mesma pergunta feita em outro campo: é certo uma fruta ter sabor amargo ou um pássaro colocar seus ovos no ninho dos outros?

O botânico e o zoólogo sentem-se no direito de rir dessas perguntas ingênuas. A coluna mostrará, eventualmente, que o mesmo tipo de riso faz sentido quando se trata de língua. Em outras palavras, a coluna falará de fatos.

Por mais que, quando se fala de língua, o que vem à mente sejam as palavras, não é verdade que uma língua seja um conjunto de palavras

Segue-se uma pequena amostra, composta totalmente por palavras. Antes, porém, uma ressalva: por mais que, quando se fala de língua, o que vem à mente sejam as palavras (escritores eventualmente falam de sua paixão pelas palavras, embora quase sempre se distingam pela sintaxe ou pelo texto), não é verdade que uma língua seja um conjunto de palavras.

O que faz uma língua é sua gramática, vale dizer, as regras que a tornam a língua que ela é. Tanto é assim que palavras podem circular de uma língua a outra, o que dificilmente ocorre com regras. Além disso, quando uma língua recebe palavras de outra, submete-as imediatamente, adapta-as a sua estrutura.

O mesmo fenômeno pode ser verificado quando se criam palavras novas: elas seguem regras velhas. Os estrangeirismos e os neologismos são provas evidentes da força de uma língua, e não um descalabro.

A palavra ‘faxina’ frequentou a mídia nos últimos meses – e já está quase desaparecendo. Seu sentido era obviamente metafórico: tinha que ver com demissões de ministros e outros auxiliares. Era consequência de outra metáfora, ‘sujeira’ por ‘corrupção’.

Faxina na FSPFaxina é uma limpeza especial, periódica. Merece atenção redobrada. Por um lado, seu emprego nesse contexto e com esse sentido tem a ver com o fato de a presidenta ser mulher – não há registro de fatos semelhantes designados da mesma forma se eles são comandados por homens.

Outro aspecto que merece registro é o fato de a palavra ter sido recusada pela presidenta, porque teria uma acepção específica: uma faxina dura pouco (das seis às oito, ela disse), enquanto o combate à corrupção é “ossos do ofício”. Além disso, qualquer consulta mostrará que a palavra foi empregada basicamente pela oposição, tomada em sentido amplo (praticamente toda a imprensa incluída).

Como já se disse, fazer política é fazer dicionários. Em dois sentidos: tenta-se decidir que palavras constarão nele (e quais serão excluídas) e, além disso, tenta-se dar ou impor uma definição.

Por falar em fazer dicionários, o sociólogo Ricardo Antunes diz, em entrevista a Monica Manir (caderno Aliás, do Estado de S. Paulo de 16/10/2011), que chama a América Latina de continente do ‘labor’ porque as colônias eram de exploração, baseada na intensificação do trabalho, seja dos indígenas, seja dos africanos.

“Labor”, diz ele, chama atenção para a dimensão extenuante do trabalho. “Se o trabalho é um pêndulo entre criação e servidão, o labor é o pêndulo no seu lado negativo”. De uma tacada só, trata-se agudamente de quatro palavras, nesse agudo dicionário, sendo duas quase sinônimas: ‘labor’ e ‘servidão’.

‘Chacrinha’, ao lado de outras palavras estruturalmente semelhantes, é um dos fortes indícios de um traço do português: trata-se de uma língua paroxítona. De fato, as palavras proparoxítonas pertencem, em sua maioria, a um estrato erudito e técnico, sendo palavras buscadas tardiamente no latim e no grego.

Entre as oxítonas estão algumas poucas palavras ‘nativas’ (só, está, ali, lá) e outras tantas de origem africana ou indígena (jacaré, cafundó).

Palavras proparoxítonas ‘nativas’ (como abóbora, chácara e xícara, mas também estômago, fósforo, útero etc.) convivem com variantes populares paroxítonas (abobra, chacra e xicra). É possível que essas formas nunca venham a ser palavras cultas.

Não custa lembrar que muitas passaram por esse processo: ‘asinu’ > ‘asno’, ‘littera’ > ‘letra’, ‘regula’ > ‘regra’. Muita gente acha essas formas horríveis, mas não vê problema em dizer ‘abobrinha’, ‘chacrinha’ e ‘xicrinha’. Logo…  

Muitos não gostam de palavras novas (mesmo que gostem de novidades em todos os outros campos). Reclamam de neologismos que consideram de péssimo gosto ou meros indícios de esnobismo ou de ignorância da língua.

Por que ‘inicializar’, perguntam, se a língua já tem ‘iniciar’? Por duas razões: porque se trata de um campo particular, a informática; e porque uma dessas palavras deriva de ‘início’ e outra de ‘inicial’. Ou seria tradução de ‘inicialize’? Pode ser.

Mas essa hipótese não anula o primeiro argumento. E, mesmo assim, pode-se ver o poder da gramática: o verbo é da primeira conjugação e completamente regular, como todos os verbos novos, sejam neologismos ou estrangeirismos. 

Dicionário HouaissÀs vezes, fala-se do número de palavras que uma língua tem, ou que os dicionários registram, o que não é exatamente a mesma coisa. Outras, fala-se de quantas palavras empregaram em sua obra tais e tais escritores.

Para quem emprega entre seis e dez mil durante a vida toda, acaba importando pouco que uma língua tenha 400 mil ou um milhão, embora tais cifras indiquem o peso cultural relativo de uma língua (na verdade, de um ou de alguns povos, ou de seu PIB e de seus caças).

Mas há detalhes: empregar mais ou menos palavras não é apenas uma questão de cultura (livresca). É também uma questão de especialização, profissional, religiosa ou ideológica. Ou até circunstancial.

Às vezes, não é fácil distinguir certos empregos. Por exemplo, ‘gasto’ e ‘investimento’. Uma das diferenças semânticas está relacionada à renda do beneficiário: com pobres se gasta, com ricos (empresas) se investe. Divisão semelhante à descoberta por Renato Janine Ribeiro (há bom tempo) no emprego de ‘sociedade’ e de ‘social’. Referia-se especialmente às ações do governo, ou que o envolvem.

Faça-se o teste: quando a sociedade reclama do governo ou quando ele se reúne com ela, trata-se sempre de poucas pessoas, bem poucas (a sociedade cabe em um restaurante de tamanho médio; ou cabia).

Quando se trata do social, fala-se do povo, dos pobres. Um governo tem sensibilidade social (ou diz que tem) se gasta algum em cestas básicas ou em bolsas. Quando a sociedade acha que gasta um pouco demais com eles, então fala de gastança.

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas