Claro como água?

Assisti recentemente a duas conferências que me marcaram. Uma foi proferida por Wilson de Figueiredo Jardim, da Unicamp, em meu instituto, e a outra, por Marie Vahter, do Instituto Karolinska da Suécia, no âmbito da Conferência de Saúde Ambiental 2011, em Salvador.

Ambas fazem menção ao famigerado ciclo fechado da matéria, já comentado em coluna anterior. Resumidamente, nunca nos livramos daquilo que extraímos do subsolo ou fabricamos, nem quando o jogamos no lixo, na privada ou na pia.

Jardim analisa metais, hormônios, cafeína e outras substâncias em esgoto, águas de rio, de poço e de torneira, em diversos locais do país. Já Vahter estuda há décadas a presença de diferentes metais em águas em geral. Ambos têm notícias muito intrigantes, e algumas preocupantes, a nos dar sobre a composição da água que bebemos.

Para começar: ninguém fabrica água. Exploramos reservas naturais já existentes. Gelo, neve, água de rio ou lago, água subterrânea… Costumamos captá-la em algum ponto adequado, tratá-la e distribuí-la a fim de que seja usada para cozinhar, lavar, diluir e transportar nossos excrementos, efluentes industriais e agrícolas. 

A água poluída que é processada (ou não) em uma estação de tratamento de esgotos é geralmente devolvida ao mesmo rio de onde foi captada e utilizada pela próxima cidade rio abaixo, e assim sucessivamente até a desembocadura do infeliz rio em questão.

 

Sem escapatória

Mas o tratamento, quando há, remove todas as impurezas, certo? Errado. À custa de muita adição de cloro, a água que abastece residências, escolas e trabalhos é bacteriologicamente segura. 

Os tratamentos disponíveis removem partículas e parte das substâncias dissolvidas, dependendo das características químicas dessas substâncias. O resultado é uma água transparente e, geralmente, inodora e insípida, mas não quimicamente pura. Que horror, não é mesmo? Exigimos água quimicamente pura, já! Perda de tempo. É impossível, ou melhor, impraticável. 

Exigimos água quimicamente pura, já! Perda de tempo. É impossível, ou melhor, impraticável

Quando uma pessoa toma uma aspirina ou um café, parte desses compostos é excretada, na sua forma original ou na forma de um produto de decomposição. Seja como for, uma parcela deles passa incólume pelos tratamentos usuais de água ou esgoto. Assim, mesmo que você odeie café, está ingerindo cafeína via água da torneira. 

O mesmo se aplica a hormônios. Alguém que faz uso regular de pílulas anticoncepcionais produz uma urina que contém uma fração dos hormônios ingeridos. O esgoto, mesmo tratado, conterá traços desses hormônios. Idem para qualquer outro medicamento ou droga. 

A cocaína é um bom exemplo. Cerca de 20% da cocaína inalada ou injetada acabará na urina do consumidor. Se estimarmos a quantidade de esgoto produzido numa cidade e o seu fator de diluição, a análise da água dos córregos urbanos permitirá uma estimativa do consumo total de cocaína da cidade.  

Há poucas cidades brasileiras em que todo o esgoto é coletado e tratado adequadamente. Brasília, ou melhor, o trecho referente ao seu Plano Piloto, é uma das poucas que atendem essa condição. 

Estação de tratamento de esgoto
Estação de tratamento de esgoto. Brasília é uma das poucas cidades em que a água é tratada adequadamente. Análises de cocaína no esgoto da cidade revelaram um consumo anual estimado em três toneladas da droga. (foto: Wikimedia Commons)

Análises de cocaína no esgoto da cidade permitiram que Jardim estimasse um consumo anual de três toneladas da droga. Antes dessas análises, a polícia local estimava um consumo anual 10 vezes inferior.

 

Diversas incógnitas

Bom, se a água da torneira preserva tantas impurezas, é mais seguro tomar água mineral, certo? De forma geral, sim. A água do subsolo é, geralmente, uma água fóssil, que há muito tempo foi chuva e se infiltrou lentamente no solo. 

Ela passa por camadas e camadas de solo e rochas até ressurgir, às vezes bem longe do ponto onde se infiltrou, com etiqueta, marca, CNPJ e tabela de composição química. 

Ah, então analisaram tudo, certo? Você está louco(a)! Já imaginou o quanto custaria analisar cafeína, hormônios, pesticidas, antibióticos, anti-inflamatórios, anti-isso, antiaquilo? Beba sua água e fique quieto. 

Garrafa PET
As garrafas PET contêm bisfenol-A, um composto que mimetiza hormônios femininos. (foto: Davi Sommerfeld/ CC BY 2.0)

Muito bem, a água está ok, mas e a garrafa? Já ouviu dizer que as garrafas PET contêm bisfenol-A, que mantém o plástico flexível, mas mimetiza hormônios femininos? Sim, é verdade. Mas as concentrações são baixíssimas e não há provas científicas de que isto represente algum problema de saúde. Idem para todas as outras substâncias, se consideradas isoladamente. 

Aí é que mora o perigo. Essas substâncias não vêm uma de cada vez, estão todas juntas, em concentrações baixíssimas, é verdade, mas juntas. E o que acontece quando estão todas juntas? Algumas se anulam mutuamente, outras somam seus efeitos e outras ainda os multiplicam. 

E qual o efeito disso tudo na nossa saúde? Ninguém sabe ao certo, e não há como fazer um experimento controlado para responder a pergunta. Ora, direis, já estamos sendo cobaias de um megaexperimento sem que ninguém nos tenha apresentado um termo de consentimento livre e esclarecido para assinar. Exato. 

Talvez daqui a algumas décadas saibamos se a queda da fertilidade masculina e o aumento da taxa de alguns tipos de câncer, dos problemas reprodutivos em geral, das alergias e das doenças autoimunes tem a ver com a presença dessas substâncias na água, no ar e nos alimentos, e quanto. Ou não.

Por enquanto, só desconfiamos, mas continuamos bebendo. Que remédio, não é mesmo?

 

Tiro pela culatra

Então que tal cavar um poço bem fundo para extrair água que ainda não teve tempo de ser contaminada? Parece uma boa ideia – mas o inferno está cheio delas. Foi o que o povo de Bangladesh decidiu fazer, com a ajuda do Banco Mundial. 

A instituição financiou a perfuração de milhares de poços artesianos para abastecimento em áreas rurais que sofriam com falta crônica de água no país. Deu supercerto, os habitantes de Bangladesh agora têm água à vontade. 

Que tal cavar um poço bem fundo para extrair água que ainda não foi contaminada? Parece uma boa ideia, mas o inferno está cheio delas

O problema é que furaram os poços primeiro e analisaram a água depois, para concluir, horrorizados, que ela continha níveis muito elevados de arsênico. E ninguém o colocou ali, não. Trata-se de um elemento natural encontrado em altas concentrações nas rochas do subsolo local. Pena que é tóxico, como todos sabemos. 

Vahter vem estudando a questão há muitos anos. A professora descobriu, por exemplo, que embora a concentração de arsênico seja maior nas camadas superficiais do solo, cavar poços mais fundos não resolveria o problema toxicológico. 

Além de mais caro, levaria a uma alta exposição ao manganês, muito abundante nas camadas mais profundas do solo local. Epa, mas o manganês é um elemento essencial ao nosso corpo. Qual seria o problema dessa vez? Acontece que a concentração excessiva desse metal trocaria um problema por outro. 

Cruzes! Vou voltar a minha garrafa PET com água mineral que não vem do Bangladesh. Ok, mas escolha bem a marca. Algumas contêm concentrações muito altas e surpreendentemente variáveis de lítio, um elemento químico usado em baterias, medicamentos psiquiátricos e muitas outras coisas. Como foi parar ali? Boa pergunta. 

Mas metade da população americana tem em seu sangue concentrações detectáveis de tungstênio e ninguém tem uma explicação razoável para isto. O tungstênio é usado em filamentos de lâmpadas incandescentes. Os americanos devem ter comido lâmpadas, talvez, devido ao efeito do lítio?

Esse ciclo fechado da matéria é fogo…  

 

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro