Como ver sem enxergar

A enganação funciona tão bem que você certamente nunca notou o problema: duas ou três vezes por segundo, enquanto você move os olhos de um alvo para outro, o cérebro deixa de receber sinais das suas retinas. Trata-se de um caso crônico de cegueira intermitente, agravado por outro problema que também poderia passar desapercebido durante uma vida inteira: a péssima acuidade visual de regiões não-centrais da retina, que enxergam tudo o que não está exatamente no ponto de fixação do olhar. 

Quer se convencer do problema? Enquanto olha para esta tela, tire do pulso seu relógio, sem olhar para ele, e segure-o ao lado do computador, à distância de um braço estendido, com o mostrador virado para você (NÃO OLHE para o relógio!). Continue olhando para o monitor, fixe o olhar em um ponto e, SEM mover os olhos, aproxime dele, aos poucos, seu braço estendido segurando o relógio, até que você consiga ler as horas. A leitura, como você verá, só é possível quando o mostrador se encontra num raio de cerca de um centímetro do seu olhar.

Como a acuidade visual só é suficiente no ponto central da retina, que ’enxerga’ onde você dirige o olhar, o que chamamos rotineiramente de visão só é possível graças a uma série de movimentos rápidos e incessantes dos olhos. Cada um deles posiciona sobre o centro da retina o objeto atual das suas atenções, num processo repetido constantemente algumas vezes por segundo.

E aqui surge a próxima dificuldade: naquela fração de segundo enquanto você mexe os olhos, e até que eles se fixem novamente por outra fração de segundos, a imagem literalmente desliza sobre a retina. A boa notícia é que a natureza encontrou uma maneira de você não ver o mundo valsar para lá e para cá enquanto seus olhos se movem. A má notícia é que a tal maneira é bloquear os sinais que saem dos olhos em movimento, deixando o cérebro temporariamente cego até que os olhos estacionem de novo.

Por que então você não vê o mundo ’piscar’ a cada movimento dos olhos? A natureza, ajudada por milhões de anos de evolução, novamente encontrou um jeito: o cérebro preenche as lacunas, inferindo, pela posição anterior e a atual tanto dos olhos quanto das imagens sobre a retina, exatamente onde foi parar aquilo que você olhava antes.

Resultado: além de a imagem não deslizar, ainda temos a impressão, nítida mas completamente equivocada, de que enxergamos bem tudo ao nosso redor. O preço, no entanto, é que você não notará se algum objeto mudar de lugar justamente no instante em que você mover o olhar: seu cérebro não estava enxergando. Falha do sistema?

Muito pelo contrário, de acordo com pesquisadores das Universidades de Toronto e York, no Canadá. Perder de vista um objeto enquanto os olhos se movem seria apenas uma conseqüência inevitável de resolver da melhor maneira possível o problema de inferir continuamente a posição (e identidade) dos objetos do mundo a partir de uma imagem por natureza ruim, nítida somente no centro do olhar, e constantemente pulando sobre a retina.

Douglas Tweed e seus colegas criaram um modelo computacional da integração de imagens ao redor do momento em que os olhos se mexem. O modelo leva em conta tanto a posição da imagem sobre a retina quanto a posição dos olhos, e usa essas informações de maneira matematicamente ’perfeita’ para julgar se, durante o movimento dos olhos, algum objeto mudou de lugar. Comparado à visão de voluntários reais, o modelo perfeito… não mostrou vantagem alguma. Pelo contrário: modelo e voluntários cometiam exatamente os mesmos erros, incapazes de detectar objetos que mudavam de lugar enquanto os olhos se mexiam.

O cérebro, portanto, faz a integração de imagens tão bem quanto matematicamente poderia. Mas como pequenas frações de segundo de visão se transformam numa imagem aparentemente perfeita e contínua do mundo, sem pulos ou piscadelas enquanto os olhos se movem? Ah… os pesquisadores propõem que é como se o cérebro montasse incessantemente um quebra-cabeças cujas peças mudam no tempo e no espaço.

Fazer do cérebro um ’perfeito’ integrador espaço-temporal de imagens certamente tem dedo de seleção natural ao longo da evolução, ajudada pela experiência sensorial de cada um, que alimenta o sistema com a probabilidade de cada objeto se mover justamente enquanto a imagem pisca. Não é muito, mas é a explicação possível no momento.

Por falar em imagem que pisca, o cérebro, pelas mesmas razões e por outras mais óbvias, também fica temporariamente cego enquanto você pisca. Já notou o que acontece com seus olhos? Provavelmente não, porque tudo acontece muito rápido — mas enquanto as pálpebras fecham e abrem, seus olhos giram para cima e voltam à posição de origem. Você só volta a enxergar quando, além de as pálpebras estarem novamente abertas, os olhos voltam exatamente a onde estavam antes.

Vão-se uns décimos de segundo para piscar, outros a cada movimento dos olhos… Faça as contas e você concluirá que seu cérebro, que ’vê’ o tempo todo, só enxerga de fato durante poucos décimos de cada segundo. É o mais convincente dos ilusionistas: faz a mágica e ainda acredita nela!

Fonte: Niemeier M, Crawford JD, Tweed DB (2003). Optimal transsacadic integration explains distorted spatial perception. Nature 422, 76-80.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia