Concorrência para mamíferos?

Não é novidade que muitas vezes a descoberta de um fóssil muda a história evolutiva de um determinado grupo, mas é raro quando o novo achado influencia o que sabemos sobre um segundo grupo não proximamente relacionado.

Justamente este é o caso do Pakasuchus kapilimai, cuja descoberta acaba ser publicada em destaque pela Nature. Se os autores estiverem corretos, este pequeno crocodilomorfo ajuda a explicar por que os mamíferos fósseis são tão raros no Brasil e em outros pontos da América do Sul e da África, que outrora fizerem parte do supercontinente Gondwana.

Crânio posterior de crocodilomorfo
O crânio posterior do crocodilomorfo descoberto, ainda na matriz avermelhada de arenito (Patrick M. O’Connor, Ohio University).

A surpresa

Quando resolveu desenvolver a pesquisa na Tanzânia, na África Oriental, Patrick O’Connor, do Departamento de Ciências Biomédicas da Faculdade de Medicina Osteopática da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, estava em busca de dinossauros terópodes e aves, que são particularmente raros no continente africano.

Patrick O’Connor
Patrick O’Connor analisa os fragmentos de ossos encontrados que levariam ao esqueleto do ‘Pakasuchus kapilimai’ (foto: J.P. Cavigelli/ Tate Museum, Wyoming).

Porém, como é comum na paleontologia devido à condição errática dos fósseis, nem sempre se encontra o que se procura.

Depois das primeiras atividades de campo em um ponto situado 20 km ao sul do lago Rukwa, o pesquisador e sua equipe encontraram dentes isolados que lembravam os dos mamíferos, mas tinham uma morfologia geral reptiliana. Aquele material intrigou os cientistas e claramente indicava a existência de algum animal muito interessante nas camadas da Formação Galula.

Esta unidade estratigráfica ainda não tem a idade bem estabelecida, que pode variar entre 110 e 125 milhões de anos. Apesar de haver alguns registros paleontológicos, aquelas camadas ainda não tinham sido exploradas de uma forma mais sistemática antes de a equipe de O’Connor ter chegado à Tanzânia.

A escavação revelou um esqueleto completo e um crânio de umpequeno crocodilomorfo

Com o tempo, a escavação na região revelou um esqueleto completo e um crânio de um pequeno crocodilomorfo, facilmente reconhecido pelo dente canino e pelos osteodermos – placas ósseas que ficam embutidas no couro do animal, como se observa nos crocodilos e jacarés dos dias de hoje.

Mas, como as arcadas estavam coladas, O’Connor não conseguiu observar detalhadamente a forma da dentição daquele réptil.

De volta em Ohio, aquele exemplar foi submetido a uma análise com um equipamento que produz imagens de raio-X de alta resolução. Posteriormente, essas imagens foram compiladas para a representação tridimensional, e veio a grande surpresa: os dentes encontrados isolados na primeira fase da escavação eram iguais aos encontrados naquele crocodilomorfo…

Crocodilo do tamanho de gato
Do tamanho de um gato, o crocodilomorfo encontrado na Tanzânia tinha características pouco usuais para o grupo, notadamente os dentes similares aos de mamíferos (ilustração: Zina Deretsky, US National Science Foundation).

O ‘crocodilo gato’!

Estava claro para os paleontólogos que eles estavam à frente de um animal desconhecido pela ciência, que batizaram de Pakasuchus kapilimai. O nome é curioso e deriva da palavra paka, que no idioma falado na Tanzânia, suaíli, significa gato; e souchus, a palavra grega para crocodilo. O segundo nome da espécie foi uma homenagem ao falecido professor Saidi Kapilima, que foi de grande ajuda para que O’Connor pudesse desenvolver os trabalhos na Tanzânia.

Constituição do esqueleto sugere que a nova espécie estava bem adaptada a uma vida em terra firme

Como características gerais, o Pakasuchus era de pequeno porte, atingindo em torno de meio metro de comprimento.

A sua cabeça era curta, com apenas sete centímetros, e a superfície dos ossos era praticamente lisa, sem a ornamentação pesada com cristas e depressões encontrada na maioria dos crocodilomorfos, inclusive os recentes.

Os membros são alongados e bastante gráceis. Apesar de terem sido encontrados osteodermos, sobretudo na cauda, os mesmos são muito reduzidos na região dorsal, dispostos em uma fileira dupla.

Essa constituição do esqueleto sugere que a nova espécie estava bem adaptada a uma vida em terra firme, onde a falta de uma couraça bem desenvolvida diminuía o seu peso e aumentava a sua mobilidade.

Dentição do crocodilomorfo
A dentição do crocodilomorfo: formas parecidas com molares e mandíbula que poderia se movimentar para frente e para trás (ilustração: Zina Deretsky, US National Science Foundation).

Mas o grande destaque da ‘pequena fera’ é a sua dentição. Além de ter poucos dentes, os situados na região posterior possuem cúspides e cristas, fazendo com que os superiores se encaixem perfeitamente no correspondente da mandíbula.

Já haviam sido encontrados outros crocodilomorfos fósseis com cúspides acessórias à cúspide principal, mas nenhum com a complexidade observada no Pakasuchus, somente vista nos molares dos mamíferos.

Outra importante feição dessa espécie da Tanzânia é possuir a superfície de articulação entre as arcadas bastante alongada. Esta construção indica que a mandíbula poderia se movimentar para frente e para trás, sugerindo que o animal era eficiente na tarefa de processar o alimento. Sempre é bom ter em mente que todos os crocodilomorfos atuais arrancam pedaços da presa ou a engolem por inteiro.

 

Hipótese para ausência de mamíferos

Reconstrução da dentição
Reconstrução da dentição do ‘Pakasuchus kapilimai’ feita a partir de imagens obtidas através de tomografia computadorizada. A letra ‘a’ indica a dentição completa, a ‘b’, o número de dentes superiores e inferiores, e as demais mostram os dentes molariformes da espécie, semelhantes aos de mamíferos (reprodução/ Nature).

Outro aspecto bem interessante do estudo de O’Connors e colegas é a relação de parentesco do Pakasuchus.

A nova espécie está mais proximamente relacionada a algumas formas encontradas na América do Sul e na África (que eram interligadas no supercontinente Gondwana), incluindo o Adamantinasuchus, o Candidodon (inicialmente confundido com um mamífero) e o Malawisuchus.

O fato de todos esses crocodilomorfos terem tamanho reduzido e também possuírem uma variação dentária incluindo dentes com cúspides acessórias – alguns chegando à condição ‘molariforme’ (condição que o Pakasuchus levou ao extremo) – levou os autores a realizarem uma comparação com a fauna de mamíferos existentes durante o Cretáceo nesses continentes.

O resultado da pesquisa mostrou que os mamíferos dessa idade são muito raros, ainda mais quando comparados às faunas de mamíferos encontrados nos continentes ao norte do equador, como América do Norte e Ásia – que, diga-se de passagem, não tem crocodilomorfos parecidos com o Pakasuchus e formas aparentadas.

Esta constatação levou a uma pergunta inevitável: seria possível que esses pequenos crocodilomorfos, com dentes molariformes e hábitos terrestres, estivessem ocupando o nicho ecológico dos mamíferos?

Seria possível que esses pequenos crocodilomorfos, com dentesmolariformes e hábitos terrestres, estivessem ocupando o nichoecológico dos mamíferos?

A proposta de O’Connor e sua equipe é interessante, pois explicaria a ausência ou restrição de mamíferos no Gondwana, que são relativamente comuns em terrenos de mesma idade geológica na América do Norte e da Ásia.

Esses continentes do norte (que compunham o supercontinente Laurásia) não têm formas como o Pakasuchus e espécies relacionadas.

Apesar da importância dessa pesquisa – que demonstra como um fóssil pode influenciar a nossa percepção e entendimento acerca da evolução de um grupo totalmente distinto (no caso, dos mamíferos primitivos) – ainda existe um longo caminho para percorrer antes que a teoria levantada pelos colegas paleontólogos seja comprovada.

O maior empecilho mesmo é a falta de pesquisa de campo realizada no nosso país, onde a maioria das espécies aparentadas ao Pakasuchus foi encontrada. O registro de mamíferos dos depósitos do Cretáceo no nosso país ou na África é limitado a um único exemplar.

Resumindo, podemos dizer para os nossos paleontólogos: todo o empenho na caça aos mamíferos do Cretáceo…

Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

Paleocurtas

As últimas do mundo da paleontologia
(clique nos links sublinhados para mais detalhes)

O Museu de Lourinhã, de Portugual, acaba de anunciar um workshop sobre paleoarte. Os profissionais Fabio Pastori – vencedor de concursos na área – e Sante Mazzei, especialista em técnicas de desenho digitais, vão ministrar o curso ‘Ensinando Técnicas de Paleoarte – A Viagem Completa para o Mundo Perdido’. Serão nove dias de atividades, que incluirão noções básicas sobre o desenho científico e artístico de fósseis. 

Novo livro sobre paleontologia acaba de ser publicado pela Indiana University Press. Editado pelos principais paleontólogos venezuelanos, incluindo Orangel Aguilera, Urumaco and venezuelan paleontology: The fossil record of the Northern Neotropics traz artigos sobre fósseis do Cenozóico daquele país, incluindo os crocodilomorfos gigantes. A obra já pode ser encomendada nas principais livrarias internacionais.

A segunda Conferência Internacional de Paleontologia do Sudeste da Ásia (ICPSEA 2010) está sendo organizada pela Universidade de Mahasarakham, da Tailândia. O evento, de 1º a 5 de novembro, tem como objetivo congregar pesquisadores que têm realizado pesquisas com fósseis da Ásia e destacar sua importância na pesquisa paleontológica mundial.

Outro evento relativo aos fósseis será realizado na Decania do Instituto de Geociências da UFRJ, na Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro, de 29 de novembro a 1º de dezembro. A V Jornada Fluminense de Paleontologia reunirá sobretudo paleontólogos atuantes no Rio, que discutirão as novas descobertas na área. Também estão sendo planejados minicursos e exposições. Mais informações por e-mail.

Mario Caputo e Luiza Ponciano, do Departamento de Geologia da UFRJ, acabam de publicar um artigo que mostra o registro de geleiras existentes há 360 milhões de anos em uma das regiões mais quentes do Brasil: o Piauí. As evidências se encontram nos municípios de Brejo do Piauí e Canto do Buriti em forma de pavimentos estriados, oriundos da ação da retração e expansão de geleiras. Este interessante artigo, que faz parte de uma importante iniciativa de documentar os principais sítios geológicos e paleontológicos do Brasil, está disponível on-line [PDF].

Uma revisão da fauna de serpentes fósseis – a única de Madagascar – acaba de ser publicada pela Journal of Vertebrate Paleontology. Thomas Laduke, da Universidade de East Stroudsburg (Pensilvânia, EUA) e colegas estudaram cobras da Formação Maevarano, cuja idade remontaria ao Maastrichtiano (cerca de 66 milhões de anos atrás). Concluíram que esta fauna consiste basicamente de formas primitivas. Assim, o estudo contradiz dados moleculares, indo contra a hipótese de que Madagascar teria sido colonizada por serpentes ancestrais do grupo de Boidae, que hoje dominam a ilha.