Cucarachos e macaquitos

Em 1920, por ocasião da passagem de um time de futebol brasileiro pela Argentina, foi publicada lá uma caricatura dos jogadores como macaquinhos. O grande mal-estar gerado do lado de cá apenas exasperava uma rivalidade entre as nações argentina e brasileira que nunca deixaria de colorir as relações binacionais e o imaginário de cada parte sobre os seus vizinhos.

Felizmente, desde o século 19 nenhum conflito bélico veio a ter lugar entre as duas nações, de modo que foi no futebol que a rivalidade mais aguerridamente se manifestou. Mas ela está sempre pulsante, misturada com uma genuína curiosidade e um considerável afeto – dos dois lados da fronteira.

Uma relação desse tipo ilumina intensamente a pesquisa sobre a construção das identidades sociais. Nelas, sempre estão presentes as dimensões de proximidade e afastamento, combinadas, inseparáveis. Seja no caso nacional, seja no institucional ou no pessoal, sempre somos o não-outro, de alguma forma (o que pode se expressar inclusive no movimento de desejar ou temer, devir outrem).

No caso das configurações nacionais, a compreensão das formas empíricas concretas depende da análise histórica do desenvolvimento dessas “comunidades imaginadas”, a exemplo do trabalho do politólogo estadunidense Benedict Anderson.

O recurso da comparação antropológica encontra no fenômeno das identidades nacionais um campo dos mais férteis – e, ao mesmo tempo, dos mais desafiadores. Ao se constituir como um saber sistemático, a antropologia já encontrou em circulação na cultura ocidental complexas formas de identificação nacional ou, pelo menos, de grandes configurações coletivas.

O recurso da comparação antropológica encontra no fenômeno das identidades nacionais um campo dos mais férteis e desafiadores

A fonte principal dessas formas se encontra no movimento romântico, com sua ênfase na totalidade da experiência vital de cada população humana, em sua singularidade expressa na comunidade de língua, de costumes, de “sangue” e de terra. O filósofo alemão Johann G. Herder (1744-1803) expressou esse ideário claramente no final do século 18, com sua afirmação da peculiaridade da cultura e da história germânicas.

A ideologia das nacionalidades busca ancorar sua identidade em bases naturais, nutrindo-se de recorrentes imagens de relação do humano com suas condições ambientais, seja o clima, o contexto geográfico ou a própria sensação de um compartilhamento étnico (sob a forma das ideologias raciais, por exemplo).

A antropologia tomou desde cedo como tarefa a desconstrução de tais ilusões, sobretudo pela via do culturalismo estadunidense – a partir da obra de Franz Boas (1858-1942), importante antropólogo alemão radicado nos EUA –, afirmando a qualidade arbitrária, simbólica, das construções imaginárias da nação, do povo, da raça.

Um esforço pioneiro peculiar nesse sentido foi o da Escola de Cultura e Personalidade, em que a luta contra as reificações naturalizantes recorreu a um argumento de psicologia social, hoje desacreditado: o de um “caráter nacional”. Ruth Benedict (1887-1948), antropóloga estadunidense e uma das fundadoras daquela Escola, escreveu O Crisântemo e a Espada, que se propunha a entender o “caráter” japonês como parte da inteligência estratégica da Segunda Grande Guerra.

Brasil x Argentina
A rivalidade entre Brasil e Argentina se manifesta mais fortemente no futebol, mas está sempre pulsante, misturada a uma genuína curiosidade e um considerável afeto. (foto: Andre Kiwitz/ CC BY-SA 2.0)

Alfajores x pães de queijo

O estruturalismo antropológico veio tornar ainda mais nítido o princípio da construção simbólica das identidades, motivada apenas pelas características de ordenação do pensamento humano, como no caso do totemismo analisado pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009).

Ele nos falou dos “desvios diferenciais” fundamentais para estabelecer a qualidade de qualquer identificação simbólica, em clara proximidade com a teoria do “narcisismo das pequenas diferenças”, formulada pelo psicólogo austríaco Sigmund Freud (1835-1930). Quanto mais perto, mais necessário sublinhar a diferença… “que faz a diferença”.

Esse é o sentido em que a relação Argentina/Brasil é privilegiada. Não poderíamos estar mais próximos do que somos, pela geografia, pela história, pela natureza: não podemos por isso mesmo descuidar de carregar nas tintas de nossas diferenças. 

A ideia de tratar esse assunto na coluna surgiu a partir da leitura da recente tese de doutorado de Michele Markowitz, da Universidade Federal Fluminense (UFF), sobre o comportamento das classes médias portenhas e cariocas em seus respectivos cafés e bares.

O trabalho evidencia traços de “estilo nacional” fascinantes, tanto em sua construção própria quanto em sua consciência comparada

O trabalho evidencia traços de “estilo nacional” ou de “ethos nacional” fascinantes, tanto em sua construção própria quanto em sua consciência comparada. Aí avultam os temas da sociabilidade e das técnicas corporais, permitindo uma comparação com tantos outros trabalhos, voltados para o futebol, a religião, as práticas terapêuticas, o estilo de fazer política ou os comportamentos nas regiões de fronteira comum.

É claro que os elementos das configurações culturais em contraste não decorrem apenas da oposição entre as duas nações: cada uma delas se insere no quadro internacional das identificações possíveis desde o século 19, evoluindo segundo linhas de força muito diferentes, como a da “europeização” argentina e a da “tropicalização” brasileira.

O que é esclarecedor é como cada conjunto se apropriou de traços de estilo específicos, numa configuração que se buscava singular e “autêntica” – e como a rivalidade local participou desse trabalho simbólico em constante mutação. Afinal, alfajores e pães de queijo são dados empíricos independentes de nossas fronteiras, mas não a forma e condições em que são consumidos, nem o valor emblemático que podem assumir para os turistas de cá e de lá.

Pães de queijo x alfajores
A forma e as condições em que pães de queijo e alfajores são consumidos no Brasil e na Argentina e o valor emblemático que podem assumir para os turistas de cá e de lá são traços marcantes das identidades sociais dos dois países. (fotos: reprodução/ lilianeferrari.com – navegandonaweb.com)

Um dos fatores que vêm facilitando a produção de análises comparadas entre as duas configurações culturais é o fato de que muitos estudantes de ciências sociais argentinos vêm buscando – já há décadas – formar-se nos cursos de pós-graduação brasileiros, que tiveram melhor destino, em geral, que seus congêneres vizinhos por força dos ciclos autoritários e repressivos da política argentina.

Desse modo, mesmo análises de fenômenos brasileiros ou argentinos que não se propõem ser comparativas, acabam se enriquecendo pela experiência cultural contrastiva entre país de origem e país de formação.

Suponho que os leitores da coluna terão reconhecido por aqui muitas de suas próprias experiências pessoais sobre os estilos nacionais, seja o argentino ou o de tantas outras nações imaginariamente importantes para nossa identidade nacional.

Espero, porém, que não imaginem que eu possa considerar possível duvidar da precedência de Pelé sobre Maradona…

Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Sugestões para leitura

Anderson, B. Imagined Communities: Reflections on the origin and spread of nationalism. London, New York: Verso, 1991.

Benedict, R. O Crisântemo e a Espada. São Paulo: Editora Perspectiva, 2006 [1946].

Da Matta, R. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1986.

Frigerio, A.; Ribeiro, G. L. (orgs.). Argentinos e brasileiros: Encontros, imagens e estereótipos. Petrópolis: Vozes, 2002.

Guedes, S. L. Las naciones argentina y brasileña a través del fútbol. Vibrant, v. 6, n. 2, 2009.