Dinossauros no cardápio

Além de dinossauros, a dieta do mamífero primitivo  Repenomamus robustus, que viveu há 130 milhões de anos, incluía lagartos, aves, pterossauros e outros animais de pequeno porte (arte: Maurílio Oliveira/ Museu Nacional)

Mamíferos mesozóicos são raros – a maioria das espécies são conhecidas somente por dentes e fragmentos de arcadas superiores e inferiores. Se descobrir um dente de mamífero já deixaria a maioria dos paleontólogos muito satisfeitos, encontrar um animal completo seria motivo de grande comemoração. A descoberta de mais de um animal – e de espécies distintas, ainda por cima – seria motivo para se decretar feriado nacional. Achar um mamífero mesozóico completo, contendo restos da ultima refeição, representaria algo fantástico até para o mais otimista dos pesquisadores. O que dizer então se essa refeição fosse composta de um dinossauro? Seria quase inimaginável!
 
Pois foi exatamente isso que colegas chineses relataram em artigo publicado no começo do ano na Nature . Eles encontraram dois esqueletos de mamíferos primitivos do grupo Triconodonta (reconhecidos por uma dentição particular). O primeiro deles, Repenomamus robustus , havia sido descrito em 2000, sendo na época um dos maiores mamíferos encontrados até então. Os paleontólogos chineses descobriram um novo exemplar de R. robustus , juntamente com um animal pertencente a uma nova espécie ( R. giganticus ). Todos eles são provenientes dos depósitos da Formação Yixian – a mesma onde havia sido encontrada uma diversidade muito grande de fósseis, incluindo as possíveis primeiras formas de angiospermas e até mesmo ninhadas de dinossauros . De acordo com os autores do estudo, a idade das camadas onde esses mamíferos foram coletados varia entre 139 a 129 milhões de anos, os que as coloca na parte inferior do período Cretáceo.
 

Esqueleto do Repenomamus giganticus encontrado na China (foto: Wei Gao / Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia, Academia Chinesa de Ciências).

Os técnicos da equipe tomaram um grande susto quando começaram a preparar a região onde ficava o estômago do Repenomamus robustus : havia ali ossos que não pertenciam àquele mamífero primitivo! O exame mais cuidadoso mostrou que eles eram de um dinossauro herbívoro chamado de Psittacosaurus , relativamente comum nos depósitos da Formação Yixian.

 
Inicialmente, pensou-se que o material tinha sido transportado para aquela região por acaso – fato relativamente comum em fósseis. Mas uma análise mais detalhada não deixou margem para dúvidas: o esqueleto do Psittacosaurus – um jovem réptil com o tamanho estimado em 14 centímetros – estava dentro da região que outrora abrigava o estomago do Repenomamus robustus . Esse animal pesava de 4 a 6 kg e seu comprimento era aproximadamente 3 vezes maior que o de sua presa.
 
No mesmo depósito foi descoberto um segundo esqueleto que pertence a uma nova espécie proximamente relacionada à anterior, chamada Repenomamus giganticus . A nova espécie possuía o dobro do tamanho e pesava entre 12 e 14 kg. Apesar de não se ter encontrado no esqueleto da nova espécie conteúdo estomacal, está claro, pela estrutura do esqueleto e pela dentição, que o hábito alimentar deveria ser o mesmo.
 
Agora vem a segunda pergunta: esses mamíferos da China eram predadores ou carniceiros? Em se tratando de fósseis, a resposta para esta pergunta não é fácil. Comparados com mamíferos derivados, os Repenomamus possuía corpo mais alongado e pernas mais curtas, o que indica que os indivíduos desse gênero não deveriam se locomover rapidamente – pelo menos não por muito tempo. Sua dentição, no entanto, é compatível com a de animais carnívoros, e existe uma boa possibilidade de que esses mamíferos tenham emboscado suas presas.
 
Mamíferos atuais do mesmo porte dos Repenomamus podem derrubar, sozinhos, presas com até metade de sua massa. A maioria dos dinossauros da Formação Yixian tem massa pequena, menor que a desses mamíferos – ainda mais se forem levados em consideração os filhotes. Assim, é inteiramente possível que os Repenomamus fizessem dos dinossauros a sua dieta habitual. Como vemos nos exemplos modernos, a dieta desses mamíferos primitivos não deveria se restringir aos dinossauros: lagartos, aves, pterossauros e outros animais de pequeno porte que passassem pela frente de um Repenomamus certamente não seriam desprezados como alimento!
 
A origem dos mamíferos

Os mamíferos surgiram há muito tempo, antes do que a maioria das pessoas supõe. Os registros mais antigos são procedentes de rochas do período Triássico, formadas há 225-230 milhões de anos. Eles são parte de um grupo chamado cinodontes, que reúne animais adaptados para diferentes nichos e tipos de alimentação (veja as Paloecurtas abaixo). Alguns cinodontes eram herbívoros, outros onívoros e também existiram as formas carnívoras. Sabemos disso tudo a partir de inferências feitas com base na dentição, que começava a se diferenciar nas formas mais primitivas até chegar ao estágio da condição observada nos mamíferos e seus antepassados mais próximos (com molares, pré-molares, caninos e incisivos).

Curioso é o fato de os mamaliformes (como o Morganucodon , encontrado em rochas triássicas da China e da Inglaterra) terem surgido mais ou menos ao mesmo tempo em que os primeiros dinossauros. Estas primeiras formas e todos os demais mamíferos primitivos eram de porte pequeno – do tamanho de ratos – e continuaram assim até o final do Cretáceo, quando os dinossauros (com exceção das aves) se extinguiram. Já os dinossauros, como se sabe, alcançaram uma grande diversidade, com diversas formas e tamanhos sendo reconhecidos como os “senhores da Terra” durante quase todo o Mesozóico. Por isso, os pesquisadores acreditam que durante essa era geológica os mamíferos viveram à sombra dos “répteis terríveis” (tradução do termo Dinosauria ), possivelmente fugindo deles, e somente floresceram depois que estes se extinguiram. Deveriam ser animais noturnos e que teriam se alimentado principalmente de insetos – mas os fósseis encontrados na China obrigarão os cientistas a reescrever ao menos parte dessa história…

Com base nas evidências disponíveis (que não são poucas!), os autores concluem que esses mamíferos (e possivelmente outros) de tamanho comparativamente avantajado deveriam disputar território e alimento com várias espécies de dinossauros carnívoros. Isto não é algo trivial, pois demonstra uma maior variedade de nicho ocupado pelos mamíferos primitivos do que se supunha.

 
No entanto, é bom lembrar que continua válida a percepção geral segundo a qual a maior parte dos mamíferos eram coadjuvantes em relação aos dinossauros. Tomando por base o registro fossilífero, os Repenomamus e possivelmente outras espécies conhecidas por fragmentos ou exemplares muito incompletos que por ventura se alimentasse de dinossauros e outros animais de pequeno porte certamente eram uma exceção à regra geral. Os mamíferos só tiveram uma explosão de diversidade e quantidade – com espécies de tamanhos maiores – após a extinção dos dinossauros no final do Cretáceo. Mesmo o grupo do qual Repenomamus faz parte – os Triconodonta – não sobreviveu e possivelmente se extinguiu até antes de muitos grupos de dinossauros.
 
De qualquer forma, essa descoberta é daquelas que todo pesquisador gostaria de fazer. Quando penso nisto, me pergunto: onde esta o NOSSO depósito de Liaoning? Uma região vem logo a mente: a bacia do Araripe, no Nordeste brasileiro. Mas, para que descobertas importantes sejam feitas ali ou em outras partes de nosso território no mesmo ritmo que estão sendo realizadas em Liaoning (basta consultar Nature e Science nos últimos anos), é necessário bastante suporte – como o que o governo da China disponibiliza para seus pesquisadores. Mas este é um assunto para uma outra coluna… 

Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
03/06/05

 

Paleocurtas
As últimas do mundo da paleontologia
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Os cinodontes – grupo de vertebrados dos quais derivaram os mamíferos – são relativamente comuns em depósitos triássicos do Rio Grande do Sul e também na África. Recentemente, foram encontrados no Rio Grande do Sul restos de um animal pertencente ao gênero Luangwa , que anteriormente só era conhecido apenas na Zâmbia, em depósitos formados entre 238 e 234 milhões de anos atrás. A nova espécie brasileira, que recebeu o nome de L. sudamericana , sugere que parte dos depósitos triássicos do sul do país também teria se formado nessa época e, portanto, seriam mais antigos que se supunha. O estudo foi publicado na revista Palaeontologia africana do Bernard Price Institute , vinculado à Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul.

E o T. rex continua surpreendendo! Apos a descoberta noticiada há pouco tempo de vasos sangüíneos e outras estruturas extremamente bem preservadas, Mary Schweitzer e seus colegas descobriram no mesmo exemplar (um fêmur com aproximadamente 70 milhões de anos) uma camada de um tecido esponjoso na região medular (central) do osso. O diferencial é que esse tecido – chamado osso medular – só é encontrado em aves fêmeas no período em que estão postando ovos. Esta descoberta – publicada em 2 de junho na revista Science – é mais uma evidência da estreita ligação entre aves e dinossauros, sugerindo que algumas espécies destes répteis – como o T. rex – podem ter desenvolvido estratégias reprodutivas similares aos seus descendes voadores emplumados.

Pesquisadores argentinos e alemães acabam de noticiar um novo dinossauro da Argentina: Brachytrachelopan mesai . O exemplar consiste em parte de uma coluna vertebral e restos de membros posteriores. Encontrado em rochas do Jurássico da Patagônia, o animal pertence a um grupo de dinossauros herbívoros chamados de Dicraeosauridae – que reúne algumas das formas com o pescoço mais comprido de todos os dinossauros. No entanto, a nova espécie contraria os demais achados do grupo: o pescoço do Brachytrachelopan é cerca de 40% mais curto do que o dos demais dicraeossauros! Uma vez que o tamanho do pescoço desses animais está ligado ao seu hábito alimentar, o novo achado, publicado em 1 o de junho na revista Nature , demonstra que esses dinossauros herbívoros tinham uma diversidade ecológica maior do que se supunha.
Estruturas semelhantes a líquens acabam de ser descobertas em rochas de 600 milhões de anos. O material é procedente de rochas da Formação Doushantuo, no sul da China, que se formaram em um ambiente marinho raso. Líquen é uma associação simbiótica entre milhões de microorganismos fotossintéticos (cianobactérias ou algas) e fungos que estão tão interligados que são tratados como um organismo único. Representantes fósseis de líquen, no entanto, são muito raros e, por isso, a descoberta de cientistas chineses e americanos teve destaque na Science em maio. Segundo os autores, a descoberta indica que a parceria simbiótica deve ter se desenvolvido pela interação entre fungos e algas (ou cianobactérias) em um ambiente marinho bem antes da colonização da terra pelas plantas vasculares,  100 milhões de anos mais tarde.
Paleontólogos espanhóis e franceses descobriram uma nova espécie de peixe em rochas do Cretáceo superior (com cerca de 94 milhões de anos) das regiões de Haquel  e Nammoura, no norte do Líbano –  uma das principais localidades para a pesquisa de peixes fósseis desse período. Chamada Akromystax tilmachiton , a espécie pertence ao grupo dos picnodontiformes, que inclui peixes com corpo lateralmente estreito e alto e dentes achatados (ditos ‘molariformes’), ideais para triturar os alimentos. O norte do Líbano possui diversos depósitos com peixes fósseis tidos como independentes um do outro, sem nenhuma ligação maior. A nova espécie foi encontrada em diferentes localidades, o que sugere que havia um contato maior entre esses corpos de água do passado, permitindo que os peixes se locomovessem entre eles.  O estudo foi publicado no Journal of Vertebrate Paleontology da Sociedade de Paleontologia de Vertebrados .

 

Pesquisadores acabaram de apresentar uma revisão da ocorrência de peixes na China na Era Mesozóica (245-65 milhões de anos atrás, englobando os períodos Triássico, Jurássico e Cretáceo). A contribuição, publicada em 2004 no livro Mesozoic Fishes 3 (editora Dr. Friedrich Pfeil , Munique), sintetiza os principais achados e conclui que a fauna de peixes na China variou bastante de acordo com o período. Segundo os autores Meemann Chang (Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia de Pequim) e Desui Miao (Universidade do Kansas em Lawrence, EUA), essa variação está relacionada com a intensa influência tectônica no sistema de drenagem dos rios que influiu na distribuição das faunas paleoictiológicas. Também foram detectados casos onde ambientes de água doce se tornaram refúgios para formas marinhas.

No início de junho, pesquisadores brasileiros viajaram para a China para desenvolver trabalhos de pesquisa com vertebrados fósseis. Além das atividades científicas conjuntas, serão realizadas escavações na região de Liaoning, mais especificamente na localidade de Chaoyang que revelou os restos de pterossauros – répteis voadores aparentados (mas distintos!) dos dinossauros. Esperamos que muitas novas descobertas sejam realizadas por esta iniciativa sino-brasileira: aguarde novidades sobre essa expedição na coluna de julho!

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