Terminei a coluna do mês passado comentando duas atitudes em relação à língua: uma que só vê o produto e outra que prefere olhar para o processo. Para uma, gramática e dicionário são, de certa forma, obras estanques, prontas, especialmente no domínio do léxico. É por isso que certa tradição condena os neologismos – ou só os aceita quando “necessários”, a mesma atitude proposta em relação aos estrangeirismos.
Comecemos por estes, então. Muita gente os condena, porque os considera uma forma de invasão da cultura por outra. Talvez seja verdade. Mas eles podem ter outra faceta: em vez de revelar uma língua fraca, invadida, podem mostrar uma língua poderosa, cuja máquina se move assim que uma palavra estrangeira começa a ser empregada.
Observe o que aconteceu com “futebol”, originada de foot ball. A sílaba foot foi reorganizada, recebendo uma vogal no final. A razão é que o português repele (exceto em pronúncias quase exageradamente cuidadas) sílabas terminadas em consoantes obstruintes (daí “adevogado”/advogado e “áfita”/afta etc.). Foot torna-se “fute”. Snob torna-se “esnobe”, adequando ao português também o padrão silábico inicial. O que é isto? Um exemplo da gramática funcionando.
Palavras novas seguem regras ou padrões que existem na língua – o seu lado energeia, fundamentalmente. De “catraca”, por exemplo, surgiu há algum tempo o verbo “descatracalizar” e o substantivo “descatracalização”. Como se formam? Antes de tudo: não há nenhuma novidade no processo; só no produto.
A sequência pode ser apresentada assim: catraca > catracal > catracalizar > descatracalizar (-al forma adjetivos, como em “inicial”; – izar forma verbos, como em “oficializar”; des– forma negações, digamos, como em “desfazer”). Para “catracalização”, basta acrescentar outro sufixo, –ção, e deixar cair o “r”, se é que ainda se pronuncia…
Às vezes, a coisa parece mais abstrata. Um bom exemplo é um processo (antigo) que transformou palavras proparoxítonas em paroxítonas. Na história da língua portuguesa, esse fenômeno foi constante: áquila deu “águia”, ásinu deu “asno”, littera deu “letra” etc.
O fenômeno continua ocorrendo, e os melhores exemplos são abóbora (“abobra”), chácara (“chacra”) e xícara (“xicra”). Digo que são os melhores exemplos porque alguém poderia dizer que “musga” (de música) não é um bom exemplo do fenômeno (alguém defenderia que é só um erro etc.). Mas é quase certo que mesmo pessoas com esta mentalidade empregam “chacrinha”, “xicrinha” e “abobrinha”. Logo, aceitam implicitamente “abobra”, “chacra” e “xicra”. Sempre que invoco este exemplo diante de um conservador ele fica sem fala…
No domínio da sintaxe, a energeia é ainda mais óbvia, porque não construímos orações por imitação, mas as criamos a cada vez. Só que a demonstração, neste caso, é menos evidente. Não é necessariamente claro que as mesmas regras que constroem “gatos perseguem ratos” constroem “casas têm quartos”. E ainda menos que se trata de criação (mas é!).
Quem quiser fazer a prova, leia um livro ou um jornal, e veja se as frases nele constantes não são originais (excetuados os clichês). Talvez as exceções sejam os idiomatismos (como “quebrar um galho” ou “bater um papo”), que provavelmente memorizamos, não inventamos.
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas