Escrita é tecnologia

Minha letra sempre foi horrível. Mesmo antes deste tempo em que escrever significa teclar, minha letra já era tão ruim que uma vez um professor comentou, ao me devolver uma prova de história da América colonial, que meu texto o fez treinar a leitura de manuscritos do século 16! Portanto, nem preciso explicar por que desde então me tornei adepta do teclado.

Mas como basta a ameaça de que algo vai acabar para o interesse dos historiadores ser despertado, a recente notícia sobre o fim do ensino da letra cursiva no estado de Indiana, nos Estados Unidos, me chamou a atenção. Uma pequena matéria no jornal adicionou mais pimenta ao debate sobre a velha – também será boa? – escrita à mão.

Assim como em outros estados norte-americanos, a letra cursiva vai sair do currículo para dar lugar a ensinamentos supostamente mais importantes, como o correto uso dos teclados dos computadores. Tudo bem algumas pessoas não escreverem mais à mão, mas isto significa que a letra cursiva não é mais necessária nos dias de hoje? Será que um dia deixaremos mesmo de escrever à mão e só usaremos a caneta para assinar documentos – ou talvez nem isso?

Teclado
Em vários lugares dos Estados Unidos, a letra cursiva sai do currículo para dar lugar a ensinamentos supostamente mais importantes, como o correto uso dos teclados dos computadores. (foto: Carlos Henrique Machado/ Flickr – CC BY-NC-ND 2.0)

Polêmicas à parte, mais do que o aspecto cognitivo da questão, o que vem me interessando nesse debate são as reações nostálgicas que o anúncio do fim da letra cursiva está gerando. Ou melhor, os impactos culturais provocados pelo fim de um tipo de escrita e pelo estabelecimento de um novo. Os defensores da manutenção da escrita manual argumentam que, para escrever, basta papel e caneta. Mas até o papel e a caneta já foram, um dia, novas tecnologias.

Até onde sabemos, a humanidade escreve desde o tempo dos sumérios, que se estabeleceram na Mesopotâmia 3.500 anos antes da era cristã. Desde muito antes, os seres humanos já desenhavam, mas não escreviam no sentido de representar graficamente os sons. Depois da criação do alfabeto grego e de sua adaptação pelos romanos, foi criado o sistema alfabético tal qual existe hoje, com a representação de sons por caracteres.

De lá para cá, os homens vêm escrevendo em bambus, papiros, pergaminhos e papéis. A escrita, por sua vez, passou de mágica, ameaçadora ou perigosa, em sociedades com baixo grau de alfabetização, a agente materializador da verdade, no século 19, quando passou a incorporar o estatuto de veracidade (em processos judiciais, por exemplo) que o testemunho oral deixava de ter.

Destruição da memória?

Na verdade, muito antes do advento da caneta, a própria escrita já havia sido condenada, por ninguém menos do que Platão. Em Fedra, ele argumenta que a escrita é a pretensão de estabelecer fora da mente humana aquilo que só deveria estar dentro. Ao escrever, estaríamos destruindo a memória, fazendo uso de um recurso externo a nós mesmos.

Platão: ao escrever, estaríamos destruindo a memória, fazendo uso de um recurso externo a nós mesmos

Platão, evidentemente, não estava pensando em computadores ou calculadoras, mas estava falando de tecnologia. Também se referia a uma nova tecnologia o editor veneziano Hieronimo Squarciafico que em 1477 escreveu que “a abundância de livros deixa os homens menos estudiosos”.

Acontece que o próprio Squarciafico promoveu a impressão de clássicos escritos em latim, e as ideias de Platão só chegaram até nós porque ele as escreveu. A confiar na memória coletiva da humanidade, sequer saberíamos hoje da sua existência.

A questão é que qualquer escrita é tecnologia, seja ela qual for. Falar é humano, escrever é artificial. Por isso precisamos de algo externo a nós para escrever. Pode ser pena, lápis, caneta tinteiro ou caneta esferográfica. Ou teclado. Afinal, a criação de artifícios não é parte fundamental da natureza humana?

Bloco de notas
‘Qualquer escrita é tecnologia, seja ela qual for. Falar é humano, escrever é artificial. Por isso precisamos de algo externo a nós para escrever. Pode ser pena, lápis, caneta tinteiro ou caneta esferográfica. Ou teclado.’

Como já dei a entender, acho que não vou sentir saudades da minha letra quando deixar de usá-la. Mas com certeza sentirei falta de cadernos, lápis, lapiseiras e blocos de anotações. E os cadernos escolares, então? Como serão os adultos de amanhã, sem os cadernos da adolescência? Sei não. Talvez um pouco de nostalgia não faça mal.

Em tempo

Todo apoio ao movimento da ciência lenta, que vem ganhando visibilidade mundo afora e recentemente foi objeto de ótimo post de Bernardo Esteves. É isso mesmo: precisamos de tempo para pensar, digerir, debater, divergir. Historiadores são, por excelência, adeptos da leitura lenta – e da escrita lenta também, à mão ou teclada.

Os assinantes do manifesto defendem que há séculos a ciência vem sendo feita lentamente. Estou totalmente de acordo. Mas fico também pensando que, nesses séculos todos, fazer ciência, assim como escrever, era coisa para poucos, que nem sempre dependiam de financiamento público para realizar suas pesquisas ou nem sempre dependiam de seu próprio mérito para angariar fundos para seus estudos.

Como estabelecer critérios que respeitem o tempo longo da pesquisa e o tempo curto dos financiamentos?

Em um mundo onde muita gente quer fazer pesquisa e os critérios para atribuição de financiamento devem ser públicos e baseados exclusivamente no mérito, como estabelecer critérios que respeitem o tempo longo da pesquisa e o tempo curto dos financiamentos? (Vale a leitura de uma matéria sobre critérios de avaliação publicada aqui na CH On-line recentemente)

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Sugestões para leitura

Goody, J. (org.). Literacy in traditional societies. Nova Iorque: Cambridge University Press, 1975.

Chartier, R. (org.). História da vida privada, vol. 3: da Renascença ao século das luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Ong, W. “Orality and Literacy: writing restructures counsciousness”. In Finkelstein, D. e McCleery, A. (orgs.). The book history reader. Nova Iorque: Routledge, 2001.

Lopes, I. “Cadernos escolares: memória e discurso em marcas de correção”. In Mignot, A. C. (org.). Cadernos à vista: escola, memória e cultura escrita. Rio de Janeiro: Eduerj/Faperj, 2008.