Faces, a expressão da alma

Quadro do pintor surrealista belga René Magritte (1898-1967): Retrato de Edward James (a reprodução proibida)

O jornalista aposentado Masao Kasai (nome fictício) acordou de manhã, olhou-se no espelho e não se reconheceu refletido. Quem era aquela pessoa? Não identificou a própria face, embora a visse claramente e percebesse que se tratava de um homem oriental, com cerca de 70 anos, dotado de traços que julgava familiares. Andou pela casa e notou que tudo estava normal – todos os objetos em seus lugares. Pensou disciplinadamente no dia anterior e constatou que podia se lembrar de tudo. Aí ouviu a voz de sua mulher no quarto, foi até ela, mas ao encontrá-la… não reconheceu o rosto que estava à sua frente. Algo estava errado. Decidiu procurar um hospital.

De fato, os médicos do Hospital Tenri, em Nara (Japão), constataram que Masao havia sofrido um derrame durante a noite, perdendo a capacidade de reconhecer faces familiares, mas sem apresentar outro sintoma cognitivo digno de nota. Casos semelhantes de prosopagnosia já eram conhecidos da neurologia, e essa condição foi imortalizada por Oliver Sacks em O homem que confundiu sua mulher com um chapéu . Mas o infortúnio de Masao, relatado em 2001 pelos neurologistas Y. Wada e T. Yamamoto, apresentou uma característica importante que acabou se tornando útil para decifrar de que modo somos capazes de reconhecer tão pronta e facilmente, pela face, as pessoas próximas e as pessoas famosas. É que a hemorragia cerebral que atingiu Masao praticamente restringiu-se a um setor específico do córtex cerebral chamado área fusiforme , e limitou-se ao lado direito do cérebro.

Essa região do córtex cerebral já havia sido estudada há mais de 30 anos em macacos, pioneiramente, pelo brasileiro Carlos Eduardo Rocha-Miranda, que nessa época fazia parte de um grupo de neurocientistas da Universidade Harvard, nos EUA. O grupo havia conseguido identificar neurônios isolados nessa região da parte inferior do córtex cerebral, ativados por estímulos complexos como mãos e faces.

Rocha-Miranda conta, aliás, que tudo ocorreu por acaso, quando um dos pesquisadores passou pela frente do macaco e inadvertidamente ativou um desses neurônios. Passou de novo, e o neurônio sinalizou outra vez. Várias tentativas foram feitas até que o grupo descobriu que o alvo da preferência daquele neurônio em particular era a mão que passava pelo campo visual do animal.

Mãos, faces, objetos complexos – então temos neurônios assim tão especializados? Haveria algum neurônio em nosso cérebro capaz de reconhecer especificamente nosso próprio rosto, o de nossa avó? A discussão que se seguiu a esse trabalho foi intensa, pois era difícil aceitar que poucas células nervosas – chamadas neurônios gnósticos , os “neurônios do conhecimento” – fossem capazes de tamanha especialização.

Os códigos da percepção
A representação de objetos complexos no cérebro – não apenas faces – pode empregar códigos ditos esparsos , quando todo o objeto é codificado por poucos neurônios (um só, no limite); ou códigos populacionais , quando um grande número de neurônios contribui para o reconhecimento do objeto. E ainda: esparsos ou populacionais, esses códigos podem estar agregados em um mesmo setor do cérebro, ou então distribuídos por uma extensa região.

Ambos os códigos têm sido repetidamente descobertos no cérebro dos animais, inclusive o homem: neurônios específicos para o canto da espécie, nos canários, são um exemplo de código esparso bem conhecido. Já o comando dos movimentos precisamente direcionados que os macacos conseguem realizar depende da combinação de muitos neurônios motores ativos, o que é um exemplo de código populacional.

No caso da percepção de faces, os neurônios especializados foram identificados por diversos pesquisadores, sendo assim bem aceitos como uma realidade. Faltava saber duas coisas importantes. Estariam esses neurônios espalhados pelo córtex, ou concentrados em regiões pequenas? O código era esparso ou populacional? A questão é importante, porque neurônios agregados interagem mais facilmente, já que as distâncias são curtas. Neurônios afastados requerem conexões de longa distância, o que necessariamente implica maior lentidão no processamento.

Acima: Imagem de ressonância magnética funcional do cérebro de um macaco, em corte. Os focos amarelos são regiões ativadas por faces, e a linha vermelha representa o microeletródio que captou a atividade neuronal. O gráfico de baixo mostra a atividade neuronal média em resposta a faces e outros estímulos. Os rostos são os únicos estímulos eficazes. Adaptado de Tsao e colaboradores (2006). 

O acidente vascular de Masao Kasai indicou que seria verdadeira a hipótese de existirem poucos neurônios (código esparso), mas concentrados em uma pequena região (distribuição restrita), mas a prova só veio há alguns meses, com o trabalho realizado pela equipe de Doris Tsao, da Universidade Harvard e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA.

O grupo utilizou macacos para os experimentos. Primeiro levaram os animais à máquina de ressonância magnética funcional, que permitiu localizar precisamente as regiões ativas quando eles viam faces de outros macacos, ou mesmo de seres humanos. Descobriram três focos em uma região do lobo temporal, o mesmo que havia sido danificado no cérebro do jornalista japonês. A seguir empregaram microeletródios para captar a atividade de neurônios individuais em um desses focos, e o que encontraram foi surpreendente: praticamente todos os neurônios do foco (97%!) respondiam seletivamente a rostos.

Um dado adicional foi relevante no trabalho do grupo americano: a maioria dos neurônios respondia a muitas faces diferentes, muito raramente a uma ou duas apenas. Isso pode significar que não há neurônios isolados especializados na cara da vovó ou da mamãe, e que o reconhecimento desses rostos familiares pode ser obtido pela coordenação das respostas de conjuntos de neurônios especializados em faces. Justamente isso – a cooperação entre os neurônios seletivos a rostos – seria mais eficiente com uma distribuição agregada, que foi exatamente o que os pesquisadores encontraram.

René Magritte, o pintor surrealista belga que tão criativamente representou a nossa percepção das faces, intuiu a importância dessa habilidade: no rosto está a nossa alma, isto é, nossa expressão, nossa emoção, nossa comunicação. Não é para menos que o cérebro dos primatas dispõe de uma área exclusiva para seu reconhecimento.

SUGESTÕES PARA LEITURA
C.G. Gross, C.E. Rocha-Miranda e D. Bender (1972) Visual properties of neurons in inferotemporal cortex of the macaque. Journal of Neurophysiology , vol. 35, pp. 96-111.
O. Sacks (1999) O homem que confundiu a sua mulher com um chapéu . São Paulo: Companhia das Letras.
Y. Wada e T. Yamamoto (2001) Selective impairment of face recognition due to a haematoma restricted to the right fusiform and lateral occipital region. Journal of Neurology, Neurosurgery and Psychiatry , vol. 71, pp. 254-257.
L. Reddy e N. Kanwischer (2006) Coding of visual objects in the ventral stream. Current Opinion in Neurobiology , vol. 16, pp. 408-414.
D.Y. Tsao e colaboradores (2006) A cortical region consisting entirely of face-selective cells. Science , vol. 311, pp. 670-674.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
27/04/2007