Os “brancos” de memória são um problema que há décadas intriga os cientistas (foto: Christa Sawyer).
O leitor certamente já passou por essa aflitiva experiência. Você tenta se lembrar de um termo ou do nome de alguém familiar à sua frente, mas dá um “branco” na memória. A palavra em questão, apesar de parecer muito próxima, mostra-se esquiva e arredia e não lhe vem à mente. Por isso, esse bloqueio é chamado por psicólogos de língua inglesa de TOT – sigla para tip of the tongue, ou “ponta da língua”.
Esse fenômeno, familiar a professores como eu, nos acomete ocasionalmente e nos causa a sensação de incapacidade e certo sofrimento. Mas como explicar esse processo? Como pode um simples ato cotidiano que utilizamos milhares de vezes ao dia – o acesso à memória – simplesmente falhar?
O fenômeno TOT é um velho conhecido de cientistas e pensadores – ele teria sido citado até pelo filósofo grego Aristóteles, no século 4 a.C. Sua primeira menção na literatura cientifica foi feita em 1890 pelo psicólogo americano William James (1842-1910) no livro Os princípios da psicologia. O autor descreveu essa experiência como a incapacidade de verbalizarmos uma palavra embora tenhamos a impressão de que ela está logo ali em nossa memória.
O TOT produz reações psicológicas facilmente reconhecíveis e pronunciadas: as pessoas que o experimentam sentem que a palavra bloqueada está próxima de ser recuperada – figurativamente, na “ponta da língua”. Como essa recuperação pode tardar, o TOT muitas vezes se associa a sentimentos de inacessibilidade e de iminência.
O fenômeno tem sido relatado por pessoas das mais diversas culturas e talvez seja universal. Além disso, ele parece dependente da faixa etária, por ser muito mais freqüente em indivíduos mais idosos. O estresse e a depressão podem também tornar esse fenômeno mais freqüente. Mais comumente, ele está associado com substantivos, principalmente nomes próprios. A boa notícia é que, em média, na metade das vezes, a palavra buscada acaba sendo lembrada após algumas tentativas.
Memória de longa duração
A palavra que tentamos recordar fica armazenada em nossa memória de longa duração, de onde pode ser recuperada e usada ocasionalmente. Por isso, poderíamos especular que o “branco” que experimentamos no fenômeno TOT poderia ser explicado por algum bloqueio temporário na capacidade do cérebro de recuperar essa memória.
Placas senis no córtex cerebral de um paciente com o mal de Alzheimer. As falhas na capacidade de recuperação de memórias características dessa doença podem ajudar a entender o fenômeno TOT (foto: Wikimedia Commons).
Interessantemente, a habilidade de lembrar palavras associadas ao termo esquecido é perdida em portadores do mal de Alzheimer e demência. Essas patologias envolvem falhas na capacidade de recuperação de memórias localizadas em áreas especificas do cérebro. Algo similar pode ocorrer quando esquecemos algo.
Embora o TOT se torne mais comum à medida que envelhecemos, ele não deve ser considerado – desde que não exceda limites normais – sinal de alguma patologia. Esse fenômeno nos dá, contudo, pistas de como o nosso cérebro normalmente produz o vocabulário que utilizamos para nos comunicarmos.
Há uma série enorme de termos, pessoas e definições que precisamos estocar em nosso cérebro para que estejam facilmente ao nosso alcance no dia-a-dia. Tenho de conhecer nominalmente, por exemplo, todos os parentes de minha esposa, todos os alunos e pessoas com quem mantenho relações diárias. Preciso também me lembrar dos milhares de termos biológicos que uso em minhas aulas. Além disso, devo ter em mente informações sobre uma série de temas do meu interesse – os resultados do meu time do coração, os filmes de Akira Kurosawa e Woody Allen, os livros de Guimarães Rosa e García Márquez etc.
Essas informações não ficam estocadas em um local específico, mas sim em diversos pontos de nosso cérebro. Assim, as características físicas de uma pessoa normalmente ficam armazenadas em um local, enquanto seu nome pode estar em outro. Por isso, muitas vezes, reconheço alguém como meu aluno, mas sou incapaz de lembrar seu nome. Há, portanto, uma falha na conexão entre esses dois locais.
Déficits de transmissão
Com a idade, os problemas nessa rede de comunicações tendem a aumentar, devido ao surgimento de “déficits de transmissão”. Essas falhas são mais freqüentes quando tentamos acessar muitas informações simultâneas. No meu caso, por exemplo, elas podem ocorrer quando estou lecionando em turmas novas e ao mesmo tempo tentando lembrar os nomes corretos de alunos. Elas também são mais comuns quando tentamos lembrar de algum dado que não foi acessado por muito tempo. Nesse caso, as informações podem ainda estar em nosso cérebro, mas sua lembrança requer certo reforço.
Um estudo publicado recentemente no Journal of Cognitive Neuroscience pela equipe de Meredith Shafto, da Universidade de Cambridge (Reino Unido), recorreu à ressonância magnética para avaliar a capacidade de voluntários de lembrar nomes de pessoas famosas a partir de fotos. O estudo indicou uma correlação entre dificuldades e atrofias em regiões do córtex insular esquerdo.
Resultados interessantes foram obtidos por um estudo anterior, realizado pela equipe de Anat Maril, da Universidade Harvard (EUA), também com exames de ressonância magnética. O grupo mostrou que a atividade de áreas do córtex cingulado e da porção inferior direita do córtex pré-frontal pode ser mais intensa durante experiências de TOT do que quando nos lembramos facilmente de alguma palavra.
O córtex cingulado anterior, destacado em azul, é uma das áreas com ativação mais intensa nos episódios de TOT, conforme mostrou um estudo de Harvard (arte: Harvard University Gazette).
A equipe de Maril mostrou que, durante as tentativas de se recuperar a informação, os pacientes recorreram a memórias visuais. Alguns deles descreveram que se lembravam do rosto da pessoa durante a tentativa de recordar seu nome; quando se tratava do autor de um livro, as pessoas relataram que estavam tentando ler seu nome em um livro imaginário.
Mas o que isso significa? Ainda restam muitos pontos a explicar até que entendamos plenamente o fenômeno TOT. O córtex cingulado anterior é uma região promissora para estudos, pois está associada a desordens como depressão e déficit de atenção ligado à hiperatividade. Ela também está envolvida em fenômenos como antecipação de recompensas, tomada de decisões, empatia e emoções. Similarmente, acredita-se o córtex pré-frontal esteja ligado à organização de pensamentos e ações.
Por que nomes próprios?
Essas descobertas podem explicar por que pessoas mais velhas experimentam mais freqüentemente episódios de TOT. Elas não indicam, contudo, por que a recordação de nomes próprios é o aspecto mais afetado de nossa memória.
Para entendermos isso, devemos retornar à teoria do déficit de transmissão. Diferentemente de outras palavras, os nomes próprios são arbitrários e nada nos dizem sobre o rosto das pessoas. No caso daqueles com quem temos relações mais próximas, há uma maior chance de reconhecimento, pois associamos os rostos com os nomes das pessoas. Há, portanto, mais possibilidades de conexões. É por isso que guardamos primeiro o nome dos melhores e dos piores alunos!
O mesmo não vale para pessoas com quem temos relações mais distantes. Podemos até lembrar a letra inicial ou mesmo a sonoridade do nome, mas somos incapazes de recordar integralmente o nome da pessoa. Essa é uma das razões por que o TOT pode ser tão frustrante…
É claro que existem técnicas para que recordemos com mais facilidade o nome das pessoas com quem temos relações mais distantes: uma delas, por exemplo, consiste em associar seu nome a alguma característica física desses indivíduos. É por isso que, geralmente, nos lembramos mais facilmente de personagens cujo nome está relacionado a alguma característica física, como o Homem-Aranha ou a Pantera Cor-de-rosa.
A atividade de certas regiões cerebrais durante os episódios de TOT sugere que a falha em uma função específica de algum mecanismo cerebral possa ser responsável por esse fenômeno. Contudo, os cientistas ainda não são capazes de definir com clareza por que acontecem esses lapsos de memória. A resposta talvez esteja na ponta da língua deles…
Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line
18/04/2008
SUGESTÕES PARA LEITURA
Astell, A.J., e T.A. Harley. Tip of the tongue states and lexical access in dementia. Brain and Language 54: 196-215, 1996.
Brennen, T., A. Vikan, e Dybdahl, R.. Are tip-of-the-tongue states universal? Evidence from the speakers of an unwritten language. Memory 15 (2): 167-76, 2007.
Brown, A.S. A review of the tip-of-the-tongue experience. Psychological Bulletin 109 (2): 204-23, 1991.
Caramazza, A., e M. Miozzo. The relation between syntactic and phonological knowledge in lexical access: evidence from the “tip-of-thetongue” phenomenon. Cognition 64: 309-43, 1997.
Maril, A., Wagner, A.D.e Schacter, D.L. On the tip of the tongue: An eventrelated fMRI study of semantic retrieval failure and cognitive conflict. Neuron 31: 653-60, 2001.