Física e a doença de Alzheimer

Se a maioria das pessoas certamente já ouviu falar sobre a doença de Alzheimer, com igual confiança podemos afirmar que apenas poucos especialistas sejam capazes de relacioná-lo com a física. No entanto, há algumas décadas, parte dos físicos vêm se debruçando sobre o tema, especificamente na dinâmica das balsas de lipídios – estruturas minúsculas ainda não visualizadas em tecidos vivos, mas cuja composição inclui melatonina, hormônio de suposta ação benéfica contra a doença.

Sendo a célula eucariótica a base funcional dos seres vivos, não é de se estranhar sua enorme complexidade, tanto em composição química e estrutural, quanto nos mecanismos de funcionamento. Ela é separada do ambiente externo pela membrana citoplasmática, uma parte de nosso organismo que vem sendo investigada há mais de um século, mas ainda guarda muitos segredos. Alguns desses segredos têm a ver com a constituição e funcionamento das balsas lipídicas, uma espécie de jangada gordurosa, usada para transportar proteínas no interior da membrana.

As balsas lipídicas se encontram na escala nanoscópica, razão pela qual ainda não foram observadas in vivo

Para começar, é preciso deixar claro que não estamos falando dos males provocados por placas de gordura e placas de colesterol – denominadas placas de lipídios pelos especialistas. Físicos e biofísicos costumam estudá-las, pois se trata de algo que tem a ver com a física dos fluidos, mas o tema em questão é outro. Diferentemente dessas placas, visíveis ao microscópio ótico, as balsas lipídicas se encontram na escala nanoscópica, razão pela qual ainda não foram observadas em células vivas, ou in vivo, como se diz na literatura especializada.

 

Uma ideia em ascensão

A existência dessas balsas foi prevista no final dos anos 1980, quando o biólogo finlandês Kai Simons descobriu que glicolipídios GPI formavam aglomerados no complexo de Golgi antes de migrarem para a superfície de células epiteliais. Nesses quase trinta anos de existência, a ideia passou por alguns momentos de descrédito pela falta de uso de técnicas apropriadas à sua caracterização. Porém, com o passar do tempo e a associação de pesquisadores da física e da biologia celular, a pesquisa sobre balsas lipídicas foi aos pouco se consolidando, e o número de publicações anuais sobre o tema atingiu a impressionante marca de 1.000 em 2004, estabilizando-se nesse patamar nos anos posteriores. O número de citações anuais cresceu linearmente até superar a marca de 40.000 em 2010.

Parte do interesse nessa área tem a ver com o fato de que as balsas lipídicas podem conter melatonina, um hormônio que aparentemente apresenta efeito benéfico contra doenças como Alzheimer. O problema é que os resultados clínicos ainda não são conclusivos, e ninguém sabe como a melatonina funciona nesses casos. Uma equipe da Universidade McMaster (Canadá), liderada pelo físico Maikel Rheinstädter, vem investigando essa questão do comportamento da melatonina nas membranas lipídicas.

Membrana citoplasmática
Ilustração de uma membrana citoplasmática. Os espaçamentos dz correspondem a regiões com diferentes constituintes. As regiões ricas em melatonina são mais estreitas e correspondem à espessura dz3. (imagem: cortesia de Maikel Rheinstädter e colaboradores)

Para facilitar a compreensão desses trabalhos, convém termos uma ideia de como são constituídas as balsas lipídicas. A membrana citoplasmática é composta de lipídios e proteínas, especialmente as enzimáticas. Entre os lipídios podemos destacar o colesterol, pela importância da sua funcionalidade, para o bem e para o mal. Já entre as proteínas podemos destacar as enzimas quinase, que catalisa reações de fosforilação, e fosfatase, que faz o inverso. Essas e outras proteínas são os principais elementos ativos da membrana. As camadas de lipídios servem para transportar as proteínas, e o colesterol funciona como uma espécie de cola, grudando os outros lipídios. É assim que se formam as balsas.

Onde entra a física? Ora, reações governadas pelas leis da termodinâmica e da eletrostática induzem o agrupamento dos lipídios e determinam sua estabilidade, que ocorre quando os agrupamentos atingem tamanhos da ordem algumas dezenas de nanômetros (o nanômetro é a bilionésima parte do metro) e contêm aproximadamente 20 moléculas de proteína.

Esses processos são objeto de grande discussão na literatura, e muitas questões continuam em aberto a respeito das balsas lipídicas. Por exemplo, exatamente o que determina a associação de proteínas e lipídios? Como é regulada a concentração de lipídios? Por que existe de três a cinco vezes mais colesterol nas balsas do que no resto da membrana citoplasmática?

Complemento de melatonina
A melatonina tem sido usada como complemento alimentar, porque, supostamente, atrasa o envelhecimento. Ninguém conseguiu comprovar, no entanto, qual o papel fisiológico desse hormônio. (foto: Murrur / Wikimedia Commons / CC BY-SA 3.0)

A física também pode ajudar a responder essas perguntas. Tendo como principal motivação o alegado efeito protetivo da melatonina em pacientes com doença de Alzheimer, a equipe da McMaster vem estudando membranas sintéticas com difração de raios-X de alta resolução. O principal objetivo é estudar a interação entre a melatonina e os outros constituintes da membrana citoplasmática para melhorar a compreensão do papel fisiológico desse hormônio.

 

Perspectivas futuras

Espera-se que esse tipo de estudo desvende o mistério da formação de placas neurotóxicas no cérebro de pessoas com a doença de Alzheimer. Por que essas placas, constituídas em sua maior parte de peptídeos beta-amiloide, são formadas, e por que elas causam demência?

A equipe canadense realizou estudos com membranas sintéticas, cujas composições e estruturas simulam aquelas existentes no cérebro. Mais de 70% da composição dessas membranas é constituída de dimiristoilfosfatidilcolina (DMPC, na sigla em inglês). O restante da composição contém peptídeos beta-amiloide, colesterol e melatonina, em diferentes concentrações. Simulações computacionais foram realizadas para a interpretação dos resultados obtidos com a difração de raios-X.

Rheinstädter e colaboradores mostraram que a interação entre peptídeo beta-amiloide e moléculas de colesterol resulta no aumento de concentração de placas e potencializam os efeitos maléficos da sua atuação. Por outro lado, o efeito da melatonina é expulsar o peptídeo beta-amiloide das balsas, diminuído sua interação com o colesterol.

Se eles conseguirem confirmar tais resultados em células vivas, temos aí o caminho para entender o suposto efeito benéfico da melatonina em pacientes com a doença de Alzheimer. Acredita-se que o conhecimento desse mecanismo pode contribuir para o tratamento da doença – como, exatamente, é uma questão ainda sem resposta.

Carlos Alberto dos Santos
Professor aposentado do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)