Parece até provocação, mas é uma extraordinária coincidência que, na estreia do jovem e renomado neurocientista Stevens Kastrup Rehen aqui na CH On-line, um físico, neófito até a raiz do cabelo na área do prof. Rehen, cometa o desatino de falar sobre optogenética, um método que aplica recursos da física em estudos biológicos, em especial, os de neurociência.
Se vale como justificativa, devo dizer que não teria como mudar o rumo da coluna, definido e preparado há mais de uma semana. Apenas há dois dias soube que a estreia do novo colunista seria hoje.
Além disso, o assunto é um belíssimo exemplo interdisciplinar, tema que tem particularmente despertado meu interesse nos últimos anos. Finalmente, trata-se de uma área com relevante contribuição de físicos, mas pouco conhecida em nossa comunidade científica.
Dito isso, desejo dar as boas-vindas ao prof. Rehen, e desde já pedir sua vênia para imprecisões e superficialidades que deverão circular pelo texto em quantidade por mim não imaginada.
Método promissor
Optogenética é uma técnica de investigação da genética que usa recursos ópticos e que foi escolhida pelos editores da revista Nature Methods como o método do ano de 2010.
Desde a época de Galileu Galilei (1564-1642), aumentar a capacidade visual na pesquisa científica – o que pode ser feito por meio de recursos ópticos – tem sido uma busca incessante por parte dos pesquisadores.
Essa necessidade se deve ao fato de que apenas uma pequena parcela dos fenômenos ópticos é captada pelos nossos olhos. Só podemos enxergar fenômenos exibidos pela luz visível, que constitui uma pequena parte do espectro eletromagnético (veja o espectro eletromagnético completo na coluna de dezembro de 2010).
Fora do campo visível, tomamos conhecimento dos fenômenos ópticos por meio de mecanismos de transdução. Por exemplo: os raios X são perceptíveis pelos efeitos que produzem em uma chapa fotográfica. Nesse caso, a chapa fotográfica é o transdutor. Diferentes mecanismos de transdução são responsáveis pelas imagens geradas, por exemplo, em exames de ressonância magnética nuclear.
O longo tempo de predominância da óptica na ciência e o reconhecimento de seus avanços, manifestado pelas concessões de prêmios Nobel à fotografia e aos diversos tipos de microscópio, estão aí para confirmar o alto valor atribuído a essa área do conhecimento científico e tecnológico.
Dupla utilidade
Mas os recursos ópticos podem ser usados tanto para observar fenômenos ópticos quanto para produzir fenômenos observados por outras técnicas. Esse é o caso da optogenética. Essencialmente, um feixe de luz incide sobre uma célula contendo material fotossensor e as respostas elétricas resultantes da interação da luz com o material são observadas ou utilizadas para desencadear outros processos biológicos.
Portanto, tem-se uma ferramenta óptica no início e uma técnica de medida elétrica no final do processo ou o desencadeamento de um novo processo, como a transmissão de algum tipo de informação entre neurônios.
Para realizar esse processo, os pesquisadores da área vêm enfrentando, ao longo do tempo, desafios tecnológicos imensos, alguns ainda não superados.
Estimular neurônios, geralmente com sinais elétricos, é uma estratégia utilizada por neurocientistas desde os tempos do cientista italiano Luigi Galvani (1737-1798), no final do século 18.
Materiais biológicos fotossensíveis também não são novidade. Já em 1961, o químico japonês Osamu Shimomura (1928-) extraía a proteína verde fluorescente (GFP, na sigla em inglês) da água-viva Aequorea victoria.
Décadas mais tarde, o biólogo norte-americano Martin Chalfie (1947-) descobriu o uso da GFP como marcador fluorescente de genes inseridos em células de outros organismos, e Roger Tsien manipulou a proteína para obter outras cores de fluorescência para uso como marcadores. Em 2008, os três dividiram o Prêmio Nobel de Química pelos trabalhos com a GFP.
A vedete da optogenética
Com a optogenética, logo, logo os cientistas estarão rotineiramente observando e controlando células individuais. A grande vedete dessa história toda, no momento, é uma proteína da família das opsinas que tem um nome esquisito, ainda não traduzido para o português: channelrhodopsin.
Das variedades dessa proteína descobertas até agora, a mais utilizada é conhecida pelo “apelido” ChR2. Quando iluminada com luz azul, a ChR2 abre um canal na membrana celular, de modo que íons, geralmente de cálcio, circulem na célula onde se localiza a proteína. Resultados experimentais indicam um mecanismo muito interessante, pelo qual a luz deforma a proteína e abre o canal iônico.
Embora ainda não exista uma teoria com os fundamentos desse processo, parece não haver dúvidas quanto ao fato de que a luz libera cargas elétricas positivas, como prótons e íons de substâncias presentes na célula, para produzir corrente elétrica.
Então, quando ChR2 é introduzida em determinados neurônios (tecnicamente, esse processo é denominado expressão), a intensidade da corrente elétrica é suficiente para produzir potenciais de ação, os responsáveis pelo processo de comunicação entre neurônios.
Como esses potenciais são muito rápidos, seus efeitos aparecem imediatamente após a incidência da luz. Essa pequena diferença entre os dois eventos faz com que o método tenha uma alta resolução temporal. Dito de outro modo: como o material responde “imediatamente” ao estímulo externo, é pequena a probabilidade de superposição de duas respostas.
Além disso, como a proteína é introduzida em determinados neurônios e não em todo o material sob investigação, a técnica tem alta resolução espacial. Ou seja, é possível saber com muita precisão de onde vêm os sinais elétricos, pois é o local onde se encontram os neurônios geneticamente modificados. E basta analisar os sinais elétricos para inferir, com alta resolução espacial, o mecanismo de funcionamento dos neurônios naquele local.
Tecnicamente, a ChR2 é um atuador optegenético, pois realiza uma ação ao receber o sinal luminoso. Agora, o sonho dos pesquisadores é formar um sistema completo, com atuadores e sensores optogenéticos. Estes teriam que variar suas propriedades ópticas em resposta a uma atividade neuronal.
Os esforços de pesquisa nessa área ainda não produziram sensores completamente satisfatórios, mas a confiança em que isso ocorra brevemente é grande. Esse tipo de sistema integrado, com altas resoluções temporais e espaciais, possibilitará um salto de qualidade na análise da conectividade, dinâmica e plasticidade dos circuitos neuronais e até mesmo na recuperação de funcionalidades perdidas.
As pesquisas em animais têm sido animadoras nesse sentido. Em 2006, uma equipe da Universidade Estadual Wayne, em Detroit (EUA), conseguiu recuperar a visão de ratos por meio de uma manipulação genética com ChR2. Essas proteínas passaram a funcionar como células fotorreceptoras na retina.
Esses parecem ser apenas os primeiros frutos dessa crescente e virtuosa parceria entre a física e a neurociência. Ao que tudo indica, essa será uma união fértil e duradoura.
Carlos Alberto dos Santos
Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação
Universidade Federal da Integração Latino-americana (Unila)