Física e química rondam Nobel de Medicina

A boa pesquisa em ciência básica tem duas consequências bem conhecidas, além da incorporação ao acervo cultural da respectiva área de conhecimento. Uma é sua apropriação no desenvolvimento de produtos tecnológicos. A outra, tão importante quanto a primeira, é sua incorporação ao cenário pedagógico dos diferentes níveis de ensino, da escola básica aos cursos universitários.

Não há regra definida, nem procedimentos predeterminados para que essas consequências se efetivem. Há casos em que a efetivação é rápida e outros em que a demora é inquietante, como parece ser o que diz respeito à demanda recente de introdução da física moderna no ensino médio.

Nos últimos dois anos, tenho acompanhado a literatura das ciências biológicas veiculada nas principais revistas científicas de circulação internacional e testemunhado a crescente utilização, naquela área, de estruturas conceituais e ferramentas teóricas e experimentais da física e da química. Em contrapartida, isso não tem resultado na inserção desses conceitos nos diversos níveis de ensino da biologia.

Há uma crescente utilização de estruturas conceituais e ferramentas teóricas e experimentais da física e da química nas ciências biológicas. Mas isso não tem resultado na inserção desses conceitos nos diversos níveis de ensino da biologia

O tema se presta a ampla e relevante discussão, impossível de ser tratada aqui em toda a sua extensão. Mas podemos levantar a questão a partir da análise do prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 2013, concedido a James E. Rothman, Randy W. Schekman e Thomas C. Südhof por suas pesquisas sobre o transporte vesicular em nossas células.

Trata-se de estudos fundamentais para o campo da biologia e para o entendimento de diversas doenças. O fato de o tema já ter sido premiado várias vezes pela Academia Real das Ciências da Suécia é boa indicação de sua importância para a pesquisa básica e para as aplicações médicas.

É difícil para quem não é da área estabelecer a relação entre os assuntos premiados em toda a história do Nobel com o tema premiado este ano. Em artigo de revisão publicado em 2000, Ira Mellman e Graham Warren destacam quatro premiações.

Em 1906, Camillo Golgi e Santiago Ramón y Cajal ganharam o Nobel de Medicina ou Fisiologia por seus trabalhos sobre a estrutura do sistema nervoso. Dois anos depois, foi a vez de Ilya Ilyich Mechnikov e Paul Ehrlich serem distinguidos em reconhecimento aos seus trabalhos sobre imunidade. Em 1974, Albert Claude, Christian de Duve e George E. Palade foram premiados por suas descobertas referentes à organização estrutural e funcional da célula. Esse trabalho, segundo Randy Schekman, um dos premiados deste ano, define a origem da moderna biologia celular.

Finalmente, em 1999, Günter Blobel, um dos colaboradores de Palade, recebeu o Nobel por descobrir que proteínas apresentam sequências de sinais que lhes permitem definir os caminhos energeticamente mais favoráveis para seu deslocamento através de membranas do retículo endoplasmático. Esses eventos científicos e tecnológicos pavimentaram a estrada para o Nobel de Medicina ou Fisiologia concedido este ano.

Transporte de moléculas nas células

De modo simplificado, o estado da arte a que se chegou com as decisivas contribuições de Rothman, Schekman e Südhof é o seguinte. Para sobreviver, as células dos seres vivos precisam transportar diferentes tipos de materiais no espaço intra e extracelular.

O serviço é feito com a participação de inúmeras proteínas, de modo organizado e dependente da utilização de neurotransmissores para comandar o sistema de comunicação entre as células nervosas. Nesse processo, uma parte importante é a definição do alvo para onde vai o material e a fusão de membranas. Utilização de microscopia eletrônica e de raios X e conhecimentos de termodinâmica e de bioquímica foram necessários para se chegar aonde os biólogos chegaram.

Estudante
Estudante analisa um circuito eletrônico digital. Noções de eletrônica digital e de uso de ferramentas pertinentes devem ser exploradas no ensino desde a educação básica. (foto: Wikimedia Commons/ Circuit-fantasist – CC BY-SA 3.0)

Nos processos de transporte vesicular, as proteínas precisam assumir determinadas conformações, às vezes se enroscando para facilitar a passagem através das membranas. Depois de liberado o produto do transporte, reassumem seu formato original e voltam ao seu lugar de origem para serem reutilizadas.

Para realizar esse procedimento, forças mecânicas e equilíbrio termodinâmico atuam de modo que o balanço energético favoreça a fusão de membranas. O processo é comandado pela presença de íons de cálcio, o famoso ‘cálcio dois mais’ (Ca2+).

Pesquisa interdisciplinar

Essa história, entre outras, indica que a biologia passa por uma transição paradigmática, que a tornará a ciência do século 21. Em grande parte, essa transição decorre do uso de conceitos e ferramentas teóricas e experimentais elaborados pela física e pela química ao longo do século 20. Ou seja, trata-se de avanços da biologia molecular advindos de pesquisa interdisciplinar.

Tudo indica que será inevitável a transferência desse paradigma para as práticas pedagógicas em todos os níveis de ensino. É cada vez mais evidente a necessidade da transferência do diálogo interdisciplinar da pesquisa para a sala de aula. Nesse sentido, biólogos, físicos e químicos têm muito o que aprender e ensinar uns aos outros.

De um modo ou de outro, os estudiosos dos processos de ensino-aprendizagem destacam a importância do conhecimento prévio para a adequada apropriação conceitual, sobretudo em matemática e ciências da natureza. Para apreciar os resultados discutidos acima e eventualmente dedicar-se ao estudo da biologia molecular ou celular, é necessário certo domínio de conceitos de mecânica, eletromagnetismo, termodinâmica e estrutura atômica.

Mulheres e a geometria euclidiana
Cena da Idade Média ilustra mulheres estudando geometria euclidiana. Os avanços científicos e tecnológicos indicam que a matemática, como base de todas as ciências, deve ser tratada com mais rigor no ensino básico. (imagem: Wikimedia Commons)

Tudo isso introduzido em diferentes níveis de ensino, valendo-se de uma pedagogia compatível com o nível de conhecimento prévio ou com o potencial de apropriação conceitual. Por exemplo, os alunos de graduação não estão preparados para estudar as leis de Fick [Adolf Eugen Fick (1829-1901), fisiologista alemão, autor das chamadas Leis de Fick da Difusão], que devem governar a difusão de Ca2+, mas podem aprender sobre forças elásticas, que dão um insight a respeito do processo de fusão das membranas.

Os conceitos devem ser introduzidos em diferentes níveis de ensino, valendo-se de uma pedagogia compatível com o nível de conhecimento prévio ou com o potencial de apropriação conceitual

Podem também apropriar-se de conceitos básicos de estrutura eletrônica dos elementos químicos, para questionar o que faz o Ca2+ ser diferente de seus vizinhos na tabela periódica (potássio, magnésio, estrôncio e escândio) para ter o importante papel que tem nesses mecanismos bioquímicos. E, mais importante ainda, os alunos dos cursos universitários têm capacidade suficiente para dominar conceitos básicos de termodinâmica, essenciais para a compreensão de inúmeros fenômenos biológicos.

É provável que um dos futuros premiados com o Nobel de Medicina ou Fisiologia seja quem decifre o mecanismo molecular responsável pela transdução e comunicação de estímulos mecânicos nas células. Entre outras coisas, esse entendimento possibilitará a fabricação de biomateriais com propriedades adaptativas, como ossos ou músculos. Se você deseja candidatar-se a esse prêmio, comece estudando propriedades elásticas dos materiais, forças capilares, viscosidade e módulo de Young.   

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana