Historiador na praia? Só se for de férias! Verdade parcial. (Historiadores vão à praia!) Estou na praia, de férias, mas ligada no canal do tempo. Não para saber se vai dar praia amanhã – aqui na Bahia é sol ou sol. Estou de olho em outros tempos, mais precisamente, no século 16.
A Praia do Forte, no litoral norte da Bahia, é mais conhecida hoje por ser a sede do Projeto Tamar, que há 30 anos se dedica a salvar as cinco espécies de tartarugas marinhas que habitam a costa do Brasil. Mas, se a praia tem esse nome, não há de ser por sua vocação para o ecoturismo. O lugar é conhecido há quatro séculos por abrigar o Castelo de Garcia d’Ávila, também denominado Casa da Torre. A edificação, construída em 1551, faz parte hoje de um parque histórico e cultural – tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1937 –, que compreende as ruínas da Casa da Torre e o sítio arqueológico no seu entorno.
O monumento impressiona. Sem similar no Brasil, é vendido pelas agências de turismo e pela Fundação Garcia d’Ávila, que o administra, como “um castelo medieval em pleno paraíso tropical”. A visita vale cada minuto, mas o lugar não é uma coisa, nem outra. Paraíso tropical, só para os turistas. No século 16, esteve longe de merecer esse título, haja vista o rigor com que Garcia d’Ávila tratou os tupinambás que habitavam a região desde muito antes de sua chegada.
El-rei D. José III havia incumbido Tomé de Souza, governador-geral da Bahia, de castigar “com muito rigor” os tupinambás, que, em 1545, tinham atacado a capitania da Bahia e feito “muitos outros danos aos cristãos de que outros [indígenas] tomaram o exemplo e fizeram semelhante em outras capitanias”. Garcia d’Ávila, protegido de Tomé de Souza e encarregado da vigilância da costa, levou a determinação à risca.
Em 1550, depois de subjugar as aldeias tupinambás localizadas perto da costa e da foz dos rios da região, partiu para cima dos “cinco até seis mil homens de peleja” hostis à colonização, reduzindo os sobreviventes à escravidão.
Por tanta dedicação e serviços prestados à Coroa, recebeu uma sesmaria. Desde então, seus negócios, originalmente de gado, não pararam de crescer. Em 1553, Garcia d’Ávila já era um dos homens mais poderosos e influentes da colônia. Tinha 24 anos.
Foi depois de suas vitórias contra os tupinambás que Garcia d’Ávila começou a construir, também por ordem de D. José III, a então chamada Torre Singela de São Pedro de Rates, que lhe serviria de residência e fortificação militar. Segundo Moniz Bandeira, autor de extenso estudo sobre o assunto, a torre ou torreão, peça mestra das fortalezas medievais da Europa ocidental, deu origem ao conjunto da fortaleza, que seria depois completada pelo Solar e pela Capela de Nossa Senhora da Conceição. O Castelo da Torre foi concluído em 1624 por Francisco Dias de Ávila Caramuru, neto de Garcia d’Ávila.
Estilo medieval
Hoje, as ruínas do Castelo de Garcia d’Ávila são as únicas remanescentes das grandes construções da época do início da colonização brasileira, um tempo de casas-grandes e fortificações militares. Por isso, a ele foi atribuído o “estilo medieval”, mesmo que medieval mesmo ele nunca tenha sido, já que foi construído no século 16, e no Brasil. Mais do que isso: chamar o Castelo de Garcia d’Ávila de medieval é, de certa forma, retomar as velhas teses sobre o caráter feudal da colonização brasileira, exaustivamente criticadas desde que Caio Prado Jr. publicou Evolução Política do Brasil, em 1933.
Nesse livro, hoje um clássico – e, como todos os clássicos, lido, relido e também intensamente criticado –, Caio Prado defendeu suas ideias sobre o sentido da colonização brasileira, depois retomadas em Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942. Caio Prado e tantos outros autores demonstram que a colonização brasileira deve ser entendida no quadro da expansão marítima e comercial europeia. Outros argumentam ser a colonização parte da formação do império português.
A discussão historiográfica sobre o assunto é intensa e chega até hoje. Mas é consenso que a sociedade feudal – e o termo feudalismo também é, ele próprio, sujeito a inúmeras críticas, já que as sociedades chamadas feudais eram muito diferentes entre si – não foi reproduzida por aqui, uma vez que as relações sociais, econômicas e políticas que marcaram o feudalismo não eram observadas no Brasil.
Isso não significa, no entanto, que as terras recebidas por Garcia d’Ávila por conta de seus serviços prestados à Coroa – extermínio e escravização de nativos, é sempre bom lembrar – não tenham dado origem a uma das maiores propriedades de que se tem notícia, com cerca de 300.000 km2 de extensão, área três vezes maior do que Portugal.
Não sei se podemos chamar essas terras de ‘feudo’, como quer Moniz Bandeira. Apesar do grande poderio dos Garcia d’Ávila, acho que não. Mas melhor seria se a Fundação Garcia d’Ávila mudasse seu slogan para “maior latifúndio do mundo em pleno paraíso (sic) tropical”. Talvez atraísse mais visitantes.
Em tempo: se você quiser ler um livro sobre o assunto, anote aí: O feudo: a Casa da Torre de Garcia d’Ávila – da conquista dos sertões à independência, de Moniz Bandeira, publicado pela editora Civilização Brasileira. Não concordo com tudo, mas ainda assim a leitura é imperdível, mesmo de férias na praia. Principalmente se a sua for a Praia do Forte.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro