Humanidade à deriva

O termo deriva genética, que dá nome a esta coluna, refere-se ao fenômeno de flutuação puramente aleatória nas freqüências alélicas de uma população ao longo do tempo, como conseqüência de um efeito de amostragem. Para entender por que isso ocorre é preciso lembrar que o conjunto de genes de uma geração não é simplesmente uma cópia exata da geração precedente, mas sim uma amostra, sujeita a erros estatísticos, qual uma loteria genética. Embora a deriva genética possa também ocorrer em grandes populações, como brilhantemente demonstrado pelo geneticista japonês Motoo Kimura (ver coluna a este respeito), seus efeitos são muito mais dramáticos em pequenas populações.

Considerando que a população mundial já vai caminhando para 7 bilhões de pessoas e que um dos problemas mais sérios da humanidade hoje é exatamente essa superpopulação, poderíamos pensar a princípio que a deriva genética seria uma força de menor importância na genética de populações humanas. Errado!

A humanidade não é um aglomerado único de pessoas em que a reprodução se dê ao acaso (panmixia), mas é composta de uma miríade de subpopulações aninhadas, de forma que o tamanho efetivo dos grupos reprodutivos humanos é pequeno, mesmo hoje. Apesar da vasta mobilidade humana na era do jato, ainda temos tendência a viver e morrer no mesmo local em que nascemos e também a casar com alguém da nossa mesma cidade. Não é nada surpreendente, então, que pessoas de uma mesma região geográfica sejam mais geneticamente parecidas do que pessoas de regiões distantes.

Ademais, a população mundial não foi sempre grande como agora. Pelo contrário, o número de pessoas em nosso passado evolucionário flutuou consideravelmente durante a pré-história, chegando a números muito pequenos em várias ocasiões. Essas reduções demográficas extremas são tecnicamente chamadas de “efeitos de gargalo”.

Brevíssima história evolucionária da humanidade

Entre 60 mil e 50 mil anos atrás, um pequeno grupo de humanos migrou da África e povoou seqüencialmente, o sudeste asiático, a Oceania, o restante da Ásia, a Europa e, finalmente, ao redor de 15 mil anos atrás, as Américas. Todos os humanos que vivem fora da África são descendentes desse pequeno contingente de pessoas.

A humanidade moderna emergiu uma única vez, na África, há aproximadamente 200 mil anos, e permaneceu isolada naquele continente durante dois terços de sua história. Alguns dados sobre esses 140 mil anos de solidão, baseados na seqüência completa do DNA mitocondrial de cerca de 600 africanos, foram publicados na semana passada no American Journal of Human Genetics pela equipe do Projeto Genográfico da National Geographic Society.

Os dados revelam um quadro de pequenos grupos humanos nômades, caçadores-coletores, vagando isolados pela ampla extensão territorial do continente africano. Há 70 mil anos uma seca prolongada quase causou a extinção do Homo sapiens. Restaram apenas cerca de 2.000 pessoas para reconstruir a humanidade – um fenomenal gargalo populacional. Com a melhora das condições climáticas, a reexpansão foi rápida.

Entre 60 mil e 50 mil anos atrás, um pequeno grupo de humanos abandonou seu lar no leste africano e arriscou-se mundo afora. Esses pioneiros, estimados em menos de mil pessoas, aparentemente seguiram por via costeira, bordejando o Golfo Pérsico e a costa da Índia até chegar ao sudeste asiático (ver mapa acima). Todos os humanos não-africanos são descendentes desse pequeno contingente – um fantástico “efeito fundador”. Aqueles mil transformaram-se em 6 bilhões!

Do sudeste asiático, os humanos conquistaram sucessivamente a Oceania, o restante da Ásia, a Europa e, finalmente, as Américas. Cada uma dessas ramificações da humanidade foi baseada na metástase de um pequeno grupo humano se aventurando ou sendo forçado a mudar-se para novos territórios.

O gráfico mostra a relação entre a variabilidade populacional humana (medida pela heterozigosidade de haplótipos de SNPs) e a distância por terra, em quilômetros, do local da população até Adis Abeba na Etiópia. Existe uma significativa correlação negativa (-0,91) indicativa de efeitos fundadores seriais no povoamento da Terra. Modificado de Li et al., Science 319:1100-4, 2008.

Mesmo agora, dezenas de milhares de anos após esses eventos, ainda encontramos no DNA da humanidade atual as indeléveis pegadas de efeitos fundadores seriados: a diversidade de populações humanas cai em proporção direta com a distância geográfica da África (ver figura). Isso é exatamente o que prediz a teoria da deriva genética, desenvolvida pelo geneticista americano Sewall Wright (1889-1988) nas décadas de 1930 e 1940.

Sewall Wright e Warwick Kerr
Como já discutido anteriormente em nossas colunas, Sewall Wright foi um dos fundadores da genética populacional teórica e da moderna síntese evolucionária (neodarwinismo), junto com Ronald Fisher e J.B.S. Haldane. Ele foi o principal responsável pelo desenvolvimento matemático da teoria da deriva genética, apresentado em vários artigos nas décadas de 1930 e 1940. Faltava, entretanto um teste experimental que comprovasse essa teoria.

Isso foi fornecido em 1954 por um jovem e brilhante geneticista brasileiro chamado Warwick Estevam Kerr (1922-) em três trabalhos publicados em 1954 na revista Evolution, em parceria com Wright. Segundo o geneticista Louis Bernard Klaczko, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), os três trabalhos publicados por Kerr e Wright (clique aqui para acessá-los) foram o primeiro teste experimental direto da deriva genética em condições controladas de laboratório e, em particular, da interação entre a deriva e a seleção. William Provine, no livro Sewall Wright and evolutionary genetics, concorda completamente com essa avaliação.

Embora o principal interesse de Warwick Kerr fosse o estudo da genética de abelhas, durante um período com Theodosius Dobzhansky, na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, ele decidiu investigar a evolução em populações pequenas com a mosca Drosophila melanogaster, o “fusquinha” da genética. Usando gerações sucessivas de pequenos grupos de moscas, Kerr conseguiu comprovar experimentalmente muitas das predições teóricas da deriva genética. Dobzhansky mostrou os resultados a Wright, que se encantou com eles.

Em conversa telefônica comigo na semana passada, Warwick Kerr lembrou-se que Wright lhe disse que seus resultados eram muito bons, mas que ele poderia torná-los ainda melhores e propôs uma parceria, aceita pelo brasileiro. Wright fez uma sofisticada análise matemática dos dados de Kerr nos três artigos assinados por ambos, especialmente no segundo deles. De acordo com Louis Klaczko, isso foi uma faca de dois gumes, porque se a análise detalhada e a matemática sofisticada de Wright tornaram os artigos mais profundos e completos, também os deixaram mais difíceis de serem lidos e entendidos.

Talvez por isso, a referência padrão de prova experimental de deriva genética não é nenhum dos trabalhos de Kerr e Wright, como seria esperado pela sua prioridade, mas outro artigo, mais acessível, publicado dois anos mais tarde por Peter Buri, usando o mesmo desenho experimental desenvolvido por Kerr!

Segundo William Provine, os dados de Warwick Kerr indicavam que apenas cerca de ¾ das moscas efetivamente participavam como ancestrais genéticos das gerações posteriores. Em outras palavras, nem todos os membros de uma geração eram geneticamente ativos. Essa foi a primeira demonstração do conceito de “tamanho efetivo da população”, um princípio que provou ser absolutamente fundamental para todo o desenvolvimento teórico posterior em genética populacional e evolucionária.

Notáveis contribuições

Warwick E. Kerr (1922-), o brilhante geneticista brasileiro que, entre tantos feitos científicos, forneceu as primeiras provas experimentais da teoria da deriva genética.

Seriam necessárias muitas colunas só para descrever os feitos científicos do grande pesquisador Warwick E. Kerr e suas contribuições para a ciência brasileira e a genética mundial. E isso sem destacar suas notáveis qualidades humanas. Um pequeno perfil dele foi publicado na CH On-line em 2002 (acesse aqui ). Seu currículo Lattes, com uma portentosa lista de nada menos que 247 artigos científicos (!) pode ser visto aqui .

Acho digno de especial menção o fato de ele ter sido o primeiro presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e o primeiro brasileiro membro estrangeiro da prestigiosa Academia de Ciências dos Estados Unidos. (A propósito, a academia americana conta agora com seis outros brasileiros além de Kerr, a saber, por ordem de admissão: Francisco Salzano, Jacob Palis, Sérgio Henrique Ferreira, Aluísio Araújo, Luiz Davidovich e Iván Izquierdo.)

Após passagens pela Universidade de São Paulo (USP), pela Universidade do Maranhão e pelo Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa), Warwick Kerr é atualmente professor titular da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais.

Um detalhe interessante: na página biográfica de Warwick Kerr no portal da Academia Brasileira de Ciências, ele relaciona os cinco artigos de sua produção que considera mais importantes. Os três artigos históricos de 1954 sobre deriva genética não constam da sua lista!

De volta à deriva genética
O fato de a humanidade ter passado por importantes gargalos populacionais e ter sido palco de repetidos efeitos fundadores certamente tornou-a vulnerável às seqüelas da deriva genética. Como demonstram a teoria de Sewall Wright e os experimentos de Warwick Kerr, uma das principais conseqüências das forças aleatórias da deriva é a perda de variabilidade genética da população. Isso fica evidente no gráfico que mostramos anteriormente. Com isso, a probabilidade média de identidade por descendência aumenta em uma população. Em outras palavras, a deriva cria homogeneidade genética.

Mas a expansão populacional, as migrações humanas e principalmente as mutações do DNA têm um efeito contrário, de reconstituir a variabilidade. Uma prova da eficiência disso é que hoje 85% da variabilidade genética humana está concentrada dentro das próprias populações e não entre diferentes populações ou entre continentes.

Quando Cristóvão Colombo chegou às Américas, havia aqui cerca de 50 milhões de habitantes e uma enorme variabilidade cultural. Havia civilizações muito avançadas, como a dos incas, astecas e maias habitando elaboradas cidades e também povos vivendo primitivamente em cavernas, como os fueguinos. Entre esses extremos estavam os esquimós, os na-dene do sudeste americano, os ameríndios das planícies norte-americanas e os ameríndios sul-americanos das florestas e dos pampas – em suma, um caleidoscópio de culturas.

Dados genéticos sugerem que todos esses nativos americanos eram descendentes de uma única migração de siberianos que vieram através do estreito de Behring entre 15 mil e 20 mil anos atrás (ver aqui um artigo do nosso grupo de pesquisa a esse respeito). Calcula-se, também, que todo o povoamento das Américas foi provavelmente feito por menos de 500 pessoas (um autor chegou a propor que foram apenas 80 indivíduos!).

Em meros 15 mil anos, menos de 500 pessoas multiplicaram-se em 50 milhões, com uma diversidade cultural incrível. Essa é a extraordinária plasticidade evolucionária do Homo sapiens, este fantástico camaleão !


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
09/05/2008