Idade das trevas

Foto de 1929 do Hospital-Colônia de Barbacena, a maior instituição psiquiátrica de Minas Gerais no século 20. Desde 1997, a instituição abriga o Museu da Loucura (foto: acervo do Museu Municipal de Barbacena).

Barbacena é uma pacata cidade do sul de Minas, famosa por seu clima acolhedor e por suas rosas. Contudo, essa cidade também é conhecida por histórias tristes e sombrias vividas no primeiro hospital psiquiátrico mineiro, o lendário Hospital-Colônia de Barbacena, manicômio fundado em 1903 no prédio do antigo Sanatório de Tuberculose na Fazenda da Caveira, em uma área que pertencera ao traidor da Inconfidência Mineira, Joaquim Silvério dos Reis.

Durante décadas foram confinados ali de forma indiscriminada pacientes de todo o Brasil, incluindo alcoólatras, sem-teto, portadores de deficiência física e mental. O hospital era uma prisão perpétua: dali essas pessoas só saiam após a morte.

Antes disso, os pacientes sofriam uma infindável série de tormentos. Eram tratados como animais e permaneciam nus, sujeitos a dormir ao relento e a comer em cochos enquanto eram torturados pelos profissionais pagos para tratar de sua saúde e bem-estar. Médicos testavam nesses pobres-diabos tratamentos brutais e que hoje causam arrepios nos visitantes do Museu da Loucura, instalado desde 1997 nas dependências do manicômio.

Era prática comum, por exemplo, que os pacientes fossem submetidos à leucotomia e à lobotomia. O primeiro desses procedimentos cirúrgicos foi criado em 1936 pelo neurologista português Antonio de Abreu Freire Egas Moniz (1874-1955). Treze anos depois, Moniz foi agraciado por sua descoberta com o Nobel de Medicina ou Fisiologia, juntamente com o fisiologista suíço Walter Hess (1881-1973).

A leucotomia consiste em abrir orifícios na parte sagital do crânio, por onde se introduz um instrumento para retirada das fibras nervosas dessa região do cérebro. A lobotomia, por sua vez, foi criada posteriormente e consiste na realização de uma incisão nos lobos frontais para desconectar as fibras nervosas dessa região do restante do cérebro.

Depois da lobotomia, pacientes agressivos eram transformados em pessoas calmas e apáticas. Embora esses procedimentos fossem indicados como último recurso terapêutico para pacientes esquizofrênicos que não respondiam aos tratamentos disponíveis, eles foram utilizados de forma indiscriminada e em larga escala em pacientes psiquiátricos.

Também era prática comum no Hospital-Colônia de Barbacena a utilização indiscriminada de eletrochoques – a eletroconvulsoterapia, no jargão médico. Esse método era empregado para acalmar pacientes agitados e agressivos e como forma de punição para aqueles que fossem rebeldes.

Terapias de choque

Aparelho eletroconvulsor do acervo do Museu da Loucura. O choque elétrico era uma terapia muito usada no Hospital-Colônia de Barbacena. Descargas de 120 a 130 V eram aplicadas nos pacientes, nem sempre por profissionais qualificados (foto: Bernardo Esteves).

A descoberta de que traumas encefálicos como convulsões e febre alta podiam ocasionalmente amenizar distúrbios mentais não é propriamente uma novidade na medicina. Na antiguidade grega, Hipócrates (460-377 a.C.) já notara que as convulsões resultantes da malária podiam curar pacientes com distúrbios mentais. Além disso, tem sido observado na prática médica que pacientes epilépticos geralmente não apresentam esquizofrenia, talvez devido a uma incompatibilidade entre convulsões e doenças mentais.

Por isso, a partir do início do século 20, foram desenvolvidos métodos para produzir choques fisiológicos para a prática psiquiátrica. Entre eles, podem ser citados a febre induzida pela malária, as convulsões produzidas pela administração de insulina ou metrazol e a terapia por choques eletroconvulsivos, desenvolvida em 1937 pelos neurologistas italianos Ugo Cerletti (1877-1963) e Lucio Bini (1908-1964).

O uso de terapias de choques fisiológicos para o tratamento das psicoses foi duramente combatido pela chamada escola psicológica da psiquiatria, que interpreta a doença mental como decorrente de desvios na personalidade ou associada a problemas surgidos durante o crescimento e no controle de impulsos internos.

Apesar disso, essas terapias se tornaram prática difundida em hospitais psiquiátricos de todo o mundo. Sua disseminação marcou o triunfo da chamada “escola biológica” da psiquiatria, que considera que as doenças mentais – particularmente as psicoses – são causadas por alterações patológicas, químicas ou estruturais do cérebro.

Devido aos maus-tratos e aos problemas criados pelas métodos supostamente terapêuticos utilizados, estima-se que cerca de 60 mil pessoas perderam a vida no Hospital-Colônia de Barbacena. A instituição se tornou, durante décadas, o principal fornecedor de cadáveres para as faculdades de medicina do país. No local também era possível comprar órgãos e ossos retirados de cadáveres cozidos em tambores à vista de outros pacientes. Apesar desse comércio, o sistema não dava conta de todos os mortos, de forma que emanava do local um forte cheiro de podridão que atraía um grande número de urubus.

Embora essas atrocidades estivessem ocorrendo sob nossos olhos, somente no final da década de 1970 a situação no manicômio começou a mudar, devido à pressão de setores da sociedade que passaram a comparar o hospital a um campo de concentração nazista.

O hospital hoje

Porta de uma antiga cela do Hospital-Colônia de Barbacena. O objeto está em exposição no Museu da Loucura, criado para exorcizar anos de maus-tratos aos pacientes ali internados (foto: Bernardo Esteves).

O hospital de Barbacena ainda está em funcionamento e abriga cerca de cem pacientes que tiveram a vida interrompida e perderam o contato com a família e com a sociedade. Porém, hoje são empregados no local procedimentos terapêuticos modernos e humanizados.

A lobotomia e a leucotomia foram praticamente banidas da prática médica. Os eletrochoques, por sua vez, passaram muito tempo sem ser utilizados, mas estão novamente sendo empregados para o tratamento de pacientes que não respondem às formas tradicionais de terapia. Acredita-se que o sucesso dessa técnica em alguns casos se deva à ocorrência de alterações drásticas no ambiente interno do cérebro que afetam de alguma forma a fisiologia dos neurônios.

Essa teoria está de acordo com a visão moderna das doenças mentais, que considera que grande parte das disfunções mentais pode ser causada por problemas associados com a transmissão de informações entre neurônios por meio de neurotransmissores como a serotonina e a norepinefrina.

Apesar disso, os horrores do Hospital-Colônia de Barbacena ainda se repetem em diversos lugares do Brasil. Em 2004, o país tinha 234 hospitais psiquiátricos, com quase 48 mil leitos para doentes mentais. Desses, segundo uma pesquisa realizada pela Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), grande parte está em situação de “extrema preocupação”.

Iniciativas como a criação do dia nacional de luta antimanicomial – celebrado ontem, 18 de maio – pretendem também conscientizar a sociedade sobre a forma com que tratamos pessoas com desvios psiquiátricos. Essa iniciativa visa à implementação em todos os municípios do país de uma reforma psiquiátrica que substitua as instituições tradicionais de tratamento dos pacientes por locais em que eles possam receber auxílio terapêutico multidisciplinar sem a necessidade de reclusão, como as residências terapêuticas, centros de convivência ou centros de atenção psicossocial.

Além disso, a implementação de instituições como o Museu da Loucura é importante para despertar a nossa reflexão sobre a fronteira entre a loucura e a razão e para que compreendamos que o que chamamos de loucura é um conjunto de várias patologias, como outras doenças quaisquer. Seus portadores, portanto, devem receber tratamento e cuidados do governo e precisam ser acolhidos com respeito e dignidade pela sociedade.  

Jerry Carvalho Borges
Universidade do Estado de Minas Gerais
Regiane Silveira Teodoro
Centro de Atenção Psicossocial – Passos (MG)
19/05/2008

SUGESTÕES PARA LEITURA
Bastos, O. (2007) Primórdios da psiquiatria no Brasil. Rev. Psiquiatr. Rio Gd. Sul, Mai/Ago. 2007, 29:2, 154-155
Harris, V. (2006). Electroconvulsive therapy: administrative codes, legislation, and professional recommendations. J. Am. Acad. Psychiatry Law 34, 406-411.
Heller, A. C. et al. (2006). Surgery of the mind and mood: a mosaic of issues in time and evolution. Neurosurgery 59, 720-733.
Kirschbaun, D.I.R. Análise histórica das práticas de enfermagem no campo da assistência psiquiátrica no Brasil, no período compreendido entre as décdas de 20 e 50 (1997). Revista Latino-Americana de Enfermagem – 5 (n. especial), 19-30.
McCall, W.V. (2001). Electroconvulsive therapy in the era of modern psychopharmacology. Int. J. Neuropsychopharmacol. 4, 315-324.
Sakas, D.E. et al. (2007). Neurosurgery for psychiatric disorders: from the excision of brain tissue to the chronic electrical stimulation of neural networks. Acta Neurochir. Suppl 97, 365-374.