É corrente a crença de que os sentidos antigos das palavras são mais verdadeiros do que os atuais. É um caso específico do mito da língua perfeita, que teria existido em algum momento, em algum lugar. A crença explica o sucesso de livrinhos sobre a origem das palavras.
Ora, nunca se poderá descobrir o pretenso sentido original. Não se pode ir ao início dos tempos. Sempre há o limite dos documentos. A pesquisa deve se deter em um momento dado da história, que não é seu início. Além disso, em geral, descobre-se que então os sentidos já eram muitos…
Apesar de tudo, a crença permanece. Um de seus efeitos menos inteligentes é certa mania recente de ‘corrigir’ as interpretações correntes, atuais, populares. A tendência ataca indistintamente expressões idiomáticas, textos populares e provérbios, entre outros.
Um caso que se tornou notável foi a intervenção do mandachuva de uma emissora poderosa, que encrencou com a expressão ‘risco de vida’ e determinou que deveria ser substituída por ‘risco de morte’. A alegação foi que ninguém corre risco de vida (de viver), e sim de morte (de morrer). Segundo sua filosofia, contrária à de Riobaldo, viver não é perigoso!
A tese parece óbvia, mas não é. ‘Perigo de vida’ não quer dizer ‘perigo de viver’, mas ‘perigo para a vida’. Um argumento em favor da manutenção da forma ‘original’ é que há expressões equivalentes, ou quase, em italiano (pericolo di vita) e em francês (au péril de sa vie).
Há muitas expressões cujo sentido não é ‘literal’. Os provérbios e os idiomatismos são os casos mais óbvios. ‘A vaca foi pro brejo’ não se aplica nem a vacas nem a brejos, e vale para numerosos eventos: o time perde, o político é cassado, o carro pifa, o aluno é reprovado, o professor se engana etc. ‘Filho de peixe peixinho é’ pode não ter nada a ver com peixes. Talvez se possa dizer, com algum exagero, que o provérbio vale para todos os casos em que filhos têm habilidades semelhantes às dos pais, exceto se se tratar de peixes! É que ninguém enuncia o provérbio quando vê um peixinho nadando ou fazendo bocas, mas o profere a respeito de jogadores, músicos, atores, jornalistas, médicos etc.
‘Matar a cobra e mostrar o pau’ significa ‘fazer algo e dar provas de que fez’, ‘defender uma posição e explicitar o argumento’, ‘alegar alguma tese e provar que é verdadeira’ etc. Mas já se disse que o ‘verdadeiro’ provérbio deveria ser ‘matar a cobra e mostrar a cobra’ (esta, sim, seria uma prova de que a cobra foi morta!), enquanto que ‘matar a cobra e mostrar o pau’ seria comportamento de gente falsa.
Febre de correção
A febre da correção atingiu também quadras populares. O correto não seria ‘batatinha quando nasce / se esparrama pelo chão…’, mas ‘põe a rama pelo chão’, porque os ‘pés’ de batata produzem ramas que se espalham pelo chão. Mas, se devemos ser literais, como explicar que a quadra continua dizendo que ‘menininha quando dorme / põe a mão no coração’ se a menininha não rasga ou corta seu corpo para colocar de fato a mão no coração?
Provérbios também têm sofrido ataques. Por exemplo, já se disse que é errado dizer ‘quem não tem cão caça com gato’, porque o correto é ‘… caça como gato’. Mas o melhor exemplo dessa onda de estultícia é o caso seguinte. Corre por aí que o verdadeiro provérbio não é ‘quem tem boca vai a Roma (o argumento é que não se viaja com a boca, vejam só!), mas ‘quem tem boca vaia Roma’ (porque é com a boca se vaia!).
Ora, na versão antiga, que é correta, Roma representa qualquer lugar para o qual se queira ir (pode ser um boteco da moda cujo endereço se desconhece). E essa representação não é gratuita, convenhamos. Afinal, nenhum lugar pode representar melhor um lugar qualquer do que Roma. Além disso, ir a Roma oferece certa dificuldade (a cidade não fica aí na esquina). O provérbio quer dizer exatamente que certa dificuldade pode ser superada fazendo perguntas, pedindo informações etc. O que não significa que isso seja sempre verdade.
‘Boca’ é uma metonímia para ‘perguntar’, ‘saber falar’ etc. Afinal, é com a boca que se faz isso, tipicamente. Alguém até poderia alegar que o provérbio é anterior à escrita etc., mas certamente esse seria um exemplo de superinterpretação, que desprezaria exatamente as ‘figuras’ em favor de uma suposta literalidade.
Além disso, por que alguém vaiaria Roma? E, principalmente, por que haveria um provérbio francês que diz ‘Qui langue a, à Rome va’, um espanhol que reza que ‘Preguntando se va a Roma’ e um italiano cujo texto é ‘Chi língua ha, a Roma va’? A tradição de todos os outros é idiota?
Se os latinos antigos diziam ‘mendacia curta semper habent crura’, por que acharíamos que ‘a mentira tem pernas curtas’ é um provérbio que foi inventado recentemente porque havia um senhor de baixa estatura (que implica ter pernas curtas) conhecido por não ser amigo de verdade?
Falácia do sentido original
Por trás da proposta de corrigir ditados está uma crença errada sobre o funcionamento das línguas. Segundo ela, as palavras deveriam ter sempre sentido literal e referir-se ao mundo ‘real’. Se isso não ocorrer, que se mudem as expressões. Mas o fato é que as palavras não têm um sentido original que deve ser mantido e nem sempre as empregamos em referência direta a coisas.
Os sentidos das palavras e das expressões são os que elas vão adquirindo ao longo do tempo. Muitas vezes, não há meio de saber como os sentidos surgiram, e muito menos como surgiram algumas expressões ou provérbios com seus diversos sentidos ou com suas diversas aplicações a contextos análogos.
Mas o melhor argumento contra a suposta necessidade de uma interpretação única e que seria ‘literal’ é dar-se conta de que dizemos ‘Ele vai de Piracicaba a S. Paulo’, ‘A Bandeirantes vai de Piracicaba a S. Paulo’ e também ‘O mandato vai de 2011 a 2014’.
Logo vai aparecer alguém que sustentará que devemos corrigir as duas últimas expressões, alegando que uma rodovia não vai. Menos ainda um mandato. Santa ignorância!
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas