Embora aparentemente desconexas, as imagens acima – que mostram crianças brincando com bolhas de sabão gigantes, uma pessoa retirando a seiva da seringueira e o busto do deus Janus, exposto no museu do Vaticano – se inter-relacionam no estudo de fluidos complexos (fotos: Roland Berger/ Randy C. Bunney/ Fubar Obfusco).
Três imagens aparentemente desconexas: alguém retira a seiva da seringueira; crianças brincam com bolhas de sabão gigantes; busto do deus Janus, exposto no museu do Vaticano. Realidade e metáfora na ciência da complexidade estabelecem conexões claras entre elas, puro reflexo dos novos tempos, das abordagens multidisciplinares.
É no estudo de fluidos complexos ou matéria fluida que essas imagens se interconectam. Para ilustrar a flexibilidade desses materiais, o cientista francês Pierre-Gilles de Gennes (1932-2007), que recebeu o Prêmio Nobel de Física em 1991, costumava relatar um experimento que os índios da Amazônia realizavam. Eles passavam a seiva da seringueira nos pés, deixavam-na secar e, em pouco tempo, tinham uma bota.
Esse fenômeno segue uma trajetória química bem conhecida. Cadeias poliméricas independentes são unidas pelo oxigênio do ar para produzir esse espetáculo da transformação de um líquido, a seiva, em uma rede sólida estruturada e resistente à tensão, a borracha. O notável nesse experimento é que uma leve ação química induziu uma drástica mudança nas propriedades mecânicas, uma característica da matéria fluida, como polímeros e emulsões.
Outro simples e belo experimento foi realizado por Benjamin Franklin (1706-1790) e tem a ver com as bolhas de sabão. Ele observou o denso filme formado quando jogou ácido oléico na superfície de um lago em Clapham Common, na Inglaterra. A partir da área do lago e do volume de óleo necessário para cobri-lo, Benjamin estimou a espessura do filme, algo em torno de 3 nanômetros (nanômetro é a bilionésima parte do metro).
Na terminologia corrente, diz-se que o ácido oléico é um surfactante natural. As bolhas de sabão existem por causa dos surfactantes, cujas instigantes propriedades e potenciais aplicações tecnológicas têm motivado uma quantidade enorme de investigações em laboratórios de muitos países. É uma bela e longa história e uma pequena e recente parte dela será contada aqui. Mas, antes de contarmos as novidades, vejamos mais um experimento simples e instrutivo.
Todo mundo sabe que óleo e água não se misturam. É fácil comprovar isso. Basta colocar um pouco de cada um em um recipiente transparente. Quase imediatamente forma-se uma camada de óleo sobre a água. Pingando algumas gotas de detergente no recipiente, observa-se a formação de algumas bolhas no óleo e na água, mas uma grande quantidade de detergente deposita-se no fundo. Agitando-se a mistura, surge uma espécie de espuma sobre a água. Essa espuma é conhecida como emulsão.
Esse fenômeno resulta da ação do detergente, que é um tipo de surfactante. Nesse caso, o detergente isolou bolhas de água e fez com que elas se misturassem ao óleo. Com o tempo, o sistema evolui para uma situação de equilíbrio: água na parte de baixo, óleo na de cima e a emulsão estabilizada na interface.
Veja que isso só acontece quando se tem os três componentes – os dois meios imiscíveis (água e óleo) e o surfactante. Se forem misturadas apenas água e algumas gotas de detergente, haverá a formação de uma solução homogênea, transparente. Se o mesmo for feito apenas com óleo e detergente, a mistura continuará homogênea, mas com um aspecto leitoso.
Água e óleo não se misturam porque ela é polar e ele é apolar. As moléculas de detergente têm uma ponta polar e outra apolar. A ponta polar atrai a água e a outra atrai o óleo, possibilitando a mistura para formar a emulsão.
Emulsões de Pickering
Agora estamos prontos para encarar a novidade, que, na verdade, tem sua origem em estudos do início do século passado. Em 1903, Walter Ramsden (1868-1947) publicou um trabalho sobre separação de sólidos nas camadas superficiais de soluções líquidas. Quatro anos depois, Spencer Umfreville Pickering (1858-1920) publicou um estudo sobre o mesmo assunto. Na introdução, ele esclarece que só tomou conhecimento do trabalho de Ramsden quando o seu estava concluído. A literatura consagrou esse fenômeno com a denominação de “emulsões de Pickering”.
Mas o que essas emulsões têm a ver com aquela que surge da agitação da mistura de água, óleo e detergente? Essencialmente, a única diferença entre elas é que as emulsões de Pickering são estabilizadas pela ação de pequenas partículas sólidas, e não por surfactantes, como no caso da mistura de água, óleo e detergente.
Visão artística das partículas Janus (imagem: Royal Society of Chemistry).
Alguns fatos curiosos em relação a esses trabalhos pioneiros: o primeiro é que o termo surfactante só foi cunhado em 1950 – antes, usava-se o termo emulsificador –; o segundo é o inexplicável desinteresse da comunidade científica pelas emulsões de Pickering.
A Web of Science registra mais de 64 mil artigos indexados com a palavra-chave surfactant e apenas 134 com o termo Pickering emulsions. Para se ter uma idéia da grandeza desse número, basta compará-lo com os 44 mil artigos com a palavra-chave chip e os 32 mil com a expressão superconductor. O primeiro artigo indexado com a expressão Pickering emulsions é de 1992 e o primeiro que apresenta a expressão no seu título é de 1999.
Nos últimos anos, o tema vem ganhando importância por causa do objeto desta coluna. Refiro-me às partículas Janus, cuja denominação foi inspirada em Janus, o deus da porta de entrada e saída, o deus de duas faces.
Partículas assimétricas
Como foi dito acima, um surfactante convencional tem duas propriedades opostas. Ele é parcialmente hidrofílico e parcialmente hidrofóbico. A parte hidrofílica, ou polar, adora a água. A outra parte, apolar, odeia a água. Por causa dessa dupla polaridade, o surfactante é solúvel em qualquer tipo de líquido.
As partículas Janus, cujo ingresso na literatura científica em 1988 deve-se a pesquisadores do Collège de France, são uma generalização do surfactante convencional, uma vez que, além de terem polaridades diferentes, podem ser produzidas com assimetria em outras propriedades. Por exemplo, um lado pode ser rugoso, enquanto o outro lado é absolutamente liso. Um lado pode ter pigmentos brancos, enquanto outro tem pigmentos negros. Um lado pode conter material magnético, enquanto o outro, apenas uma camada polimérica.
Esse último tipo pode ser usado em muitas situações em que se deseje manipular partículas microscópicas por intermédio de um campo magnético. Por exemplo, se houver necessidade de aplicação de uma medicação em alguma parte interna do corpo humano ou animal, é possível colocar a medicação na face não magnética e girar a partícula com um campo magnético externo até que a face com a medicação entre em contato com a enfermidade.
Uma propriedade interessante dessas partículas sólidas é sua capacidade de auto-organização, um conceito inerente à nanotecnologia e bastante investigado no âmbito das ciências da complexidade. Um exemplo interessante foi apresentado por pesquisadores da Universidade de Illinois (EUA). Eles produziram partículas Janus com uma face eletricamente positiva e a outra com cargas negativas.
Essas partículas apresentam interações complexas, dependendo dos seus diâmetros e do número de partículas próximas. Por exemplo, se as faces positivas de duas partículas estiverem frente a frente, o primeiro efeito é a repulsão eletrostática; mas, havendo outras partículas na vizinhança, ao efeito de repulsão junta-se o efeito de rotação, na tentativa de fazer com que faces com cargas opostas coloquem-se frente a frente. Todo esse conjunto de diferentes interações resulta na formação de diferentes estruturas, por meio de processos de auto-organização.
Para sair definitivamente dos laboratórios de pesquisa para a indústria, as partículas Janus devem deixar de desafiar o ser humano no que se refere à sua produção em grandes quantidades e com dimensões em escalas apropriadas. Como esses dois fatores são concorrentes, a grande dificuldade é preparar grandes quantidades de pequenas partículas.
Claro que estamos partindo do princípio de que o controle dimensional é uma questão superada, o que nem sempre é verdade. Ou seja, nem sempre é possível evitar uma grande dispersão dos tamanhos das partículas.
A preparação de partículas Janus com diferentes formatos, desde a esfera – a forma mais comum – até poliedros irregulares, passando por cilindros e discos, tem avançado significativamente (imagem: Royal Society of Chemistry).
Portanto, não é de se estranhar que a solução desse problema tenha, nos últimos três anos, atraído os grupos de pesquisa mais competitivos. Os resultados publicados são animadores. Não apenas o controle dimensional e a produção de grandes quantidades de amostras têm avançado significativamente, como também a preparação de partículas com diferentes formatos, desde a esfera – a forma mais comum – até poliedros irregulares, passando por cilindros e discos.
Ainda não há no mercado produtos com partículas Janus, mas é grande a expectativa de que em breve isso aconteça. Essas partículas podem ter aplicações na atual tecnologia de administração seletiva de medicamentos com o uso de nanopartículas (veja a coluna de novembro de 2007), na fabricação de conversores de energia solar mais eficientes e na área de sensores ultra-especializados. Além disso, poderão ser usadas até na fabricação de telas de computador flexíveis e com a espessura de uma folha de papel.
Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
26/12/2008