Lagarto do deserto brasileiro

– Ei, cuidado com essa rocha! O que é essa parte clara?
– Não sei. Mas parecem… dentes!

Um diálogo semelhante ocorreu, de fato, no ano passado (2014) entre dois pesquisadores durante uma escavação paleontológica que estava sendo realizada nas proximidades de Cruzeiro do Oeste, município situado no noroeste do Paraná. Quase dez pessoas estavam sentadas à beira de uma estrada, no que seria um breve intervalo para descansar em um dia de intensa atividade na recuperação de vestígios de organismos de milhões de anos. Brincando com um colega, Everton Wilner (Universidade do Contestado) havia pego uma rocha que se partiu em sua mão, revelando a arcada inferior de um réptil com menos de dois centímetros: acabava de ser descoberta uma nova espécie de lagarto fóssil do Brasil, uma verdadeira raridade!

Os Squamata

Lagartos, cobras e anfisbênias (também conhecidas como cobras-cegas) compõem os Squamata, grupo de répteis bastante diversificado que hoje possui aproximadamente 9 mil espécies. Entre estas, o ramo mais diversificado é o dos iguanídeos, com mais de 1.700 espécies, divididas em dois agrupamentos de acordo com características dos seus dentes. Nos primeiros, os dentes tendem a se fusionar na parte mais alta (apical) das arcadas dentárias, condição denominada acrodonte. Já nos lagartos iguanídeos não acrodontes, os dentes estão fusionados na parte lateral interna (lingual) das arcadas, uma condição denominada pleurodonte.

Lagartos, cobras e anfisbênias compõem os Squamata, grupo de répteis bastante diversificado que hoje possui aproximadamente 9 mil espécies

Considerando-se as formas recentes desses lagartos, os dois grupos ocupam áreas bem distintas. Os acrodontes são tipicamente encontrados no chamado Velho Mundo (Ásia, Europa e África), enquanto os não acrodontes são predominantes no Novo Mundo, que inclui as Américas, Madagascar e algumas ilhas do Pacífico. Tanto a origem desses dois grupos quanto os motivos que levaram a essa distribuição das espécies recentes são muito discutidos no meio científico. O maior problema está no escasso registro fossilífero de lagartos procedentes de depósitos formados durante a Era Mesozoica. Essa raridade é ainda mais pronunciada no supercontinente Gondwana, que, no passado, reunia as massas continentais das atuais América do Sul, África, Austrália, Antártica e Índia: menos de dez espécies válidas, contrastando com cerca de 150 presentes na Laurásia (Europa + Ásia).

Contribuição brasileira

Quando o colega Luiz Weinschütz (Universidade do Contestado) me mostrou o diminuto exemplar, fiquei bastante animado. Sabia que era algo importante, pois lagartos do Cretáceo são raros. O material seguiu para o Museu Nacional, onde foi preparado pelo habilidoso Helder de Paula Silva. Quando a remoção da rocha sedimentar da peça já estava quase finalizada, um antigo aluno meu, Tiago Simões – que está desenvolvendo seu doutorado na Universidade de Alberta em Edmonton, Canadá, sob orientação do colega Michael Caldwell (diga-se de passagem, com uma bolsa do Canadá e não do Brasil – o que já é outra história) – estava passando no museu. Eu já o havia informado sobre a descoberta e ele estava muito entusiasmado. Nasceu, assim, a parceria que resultou na descrição do Gueragama sulamericana, publicada hoje em uma das principais revistas científicas do mundo, a Nature Communications. Trata-se do primeiro lagarto acrodonte, fóssil ou recente, encontrado não apenas no Brasil, mas em toda América do Sul.

Mandíbula de ‘Gueragama sulamericana’
Mandíbula de ‘Gueragama sulamericana’. As arcadas dentárias caracterizam a espécie recém-descrita como pertencente ao grupo dos lagartos acrodontes, geralmente encontrados no Velho Mundo. Esta é a primeira vez que se encontra um animal do grupo (fóssil ou vivo) na América do Sul. (foto: Tiago Simões e Adriano Kury)

Os fósseis mais antigos de lagartos acrodontes foram encontrados em rochas formadas entre 180 e 160 milhões de anos atrás na Índia (que era parte de Gondwana). Com base nessa ocorrência e na distribuição desses lagartos, havia a hipótese de que eles se dispersaram pela Ásia durante o Cretáceo Superior, entre 83 e 66 milhões de anos atrás, e apenas no Cenozoico chegaram ao restante do Velho Mundo. No entanto, Gueragama mostra que a dispersão dos acrodontes para a América do Sul aconteceu bem antes disso, sugerindo que já no Cretáceo eles alcançaram uma distribuição global.

Cabe destacar que, mesmo não contribuindo para uma melhor elucidação da origem dos acrodontes, Gueragama embaralha um pouco a história evolutiva e de diversificação do grupo, já que a nova espécie é mais proximamente relacionada a formas que estão presentes em outros continentes do que às espécies que atualmente vivem no Brasil ou em outros pontos da América do Sul. Em algum momento da história evolutiva desse grupo de lagartos, as formas acrodontes se extinguiram na América do Sul e foram substituídas por formas não acrodontes, que passaram a ser dominantes nessa parte do mundo.

Toda vez quando se encontra um novo depósito fosslífero em áreas geográficas e idades diferentes, o potencial para a descoberta de organismos surpreendentes é muito grande

Para mim, é sempre interessante observar que, toda vez quando se encontra um novo depósito fosslífero em áreas geográficas e idades diferentes, o potencial para a descoberta de organismos surpreendentes é muito grande. Ainda mais nessa região de Cruzeiro do Oeste, onde as camadas representam um oásis em um deserto existente na região há 80 milhões de anos. Ali, já foram encontradas centenas de restos de pterossauros da espécie Caiuajara dobruskii – uma forma frugívora, que vivia em bandos nesse oásis.

Falei bastante sobre como o material foi encontrando e do que ocorreu até a publicação para que as pessoas possam ter uma ideia de como esse tipo de estudo é realizado. Pode até parecer que a ‘sorte’ esteve, mais uma vez, presente. Porém, ao meu modo de ver, o resultado é devido ao financiamento contínuo à pesquisa (no caso, da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade do Contestado), do apoio imprescindível da Prefeitura de Cruzeiro do Oeste e da atuação construtiva entre pesquisadores. E que venham mais descobertas!

Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências

 

 

Paleocurtas

As últimas do mundo da paleontologia
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Já está à disposição no YouTube o excelente documentário Peixeiros, que retrata uma triste situação na Bacia do Araripe no que diz respeito à preservação do patrimônio paleontológico. Entre os destaques está uma afirmação de um vendedor de fósseis que, ao ser preso, compromete, sobremaneira, um servidor público do Departamento Nacional da Produção Mineral local. Trata-se de uma situação muito séria, com suspeitas de desvios de conduta, e que demanda uma rígida investigação pela Direção Geral do DNPM em Brasília, sob pena de (nova) omissão do órgão.

Paulo de Souza (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e colegas acabaram de publicar nos Anais da Academia Brasileira de Ciências um estudo de uma rica e muito diversificada assembleia de palinomorfos (exemplares minúsculos de matéria orgânica encontrados em rochas sedimentares, como grãos de pólen e esporos) da unidade conhecida como Formação Aquidauana em afloramentos encontrados no estado do Mato Grosso. A descoberta auxilia nas interpretações tanto paleontológicas como de idade desse pacote sedimentar, sugerindo que as plantas existentes naquela região ocupavam posições em terras altas em um clima fortemente influenciado por condições glaciais.

Julien Louys (The Australian National University, Canberra, Austrália) e Gilbert Price (The University of Queensland, Canberra, Austrália) fizeram uma revisão da fauna denominada de Chinchilla encontrada em Queensland em rochas datadas do Plioceno. Em artigo publicado na Acta Palaeontologica Polonica, eles demonstraram a necessidade do aumento de escavações controladas na região para um melhor controle estratigráfico, a fim de que se possam realizar estudos paleoecológicos mais detalhados.

Laura Porro (University of Bristol, Inglaterra) e colegas publicaram na Palaeontology um estudo detalhado da mandíbula do peixe Eusthenopteron foordi, que é muito proximamente relacionado aos tetrápodes, o grupo de vertebrados que desenvolveu os quatro membros há aproximadamente 385 milhões de anos. Com exemplares procedentes do Canadá, os autores puderam, com auxílio da tomografia computadorizada, reconstruir diversos detalhes anatômicos dessa espécie, terminando por obter uma reconstrução tridimensional perfeita da mandíbula.

Na semana próxima, de 31 de agosto a 4 de setembro, ocorrerá o 63rd Symposium on Vertebrate Paleontology and Comparative Anatomy em Southampton, Inglaterra. Este ano, o evento está sendo realizado de forma conjunta com um simpósio sobre preparação e conservação de fósseis, envolvendo curadores. Muitos trabalhos interessantes serão apresentados, além de uma excursão aos depósitos fossilíferos existentes na ilha de Wigth. Mais informações na página do evento.

Por meio de um projeto financiado pela Fundação Carlos Chagas Filho de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), a equipe do Instituto Ciência Hoje está organizando uma coletânea com algumas das principais colunas publicadas neste espaço. Em breve, teremos mais informações.