Leitores de ontem, hoje e amanhã

Foi lançado sem muito alarde o livro O historiador como colunista: ensaios para a Folha, do inglês Peter Burke (Civilização Brasileira). O volume reúne uma seleção de textos que ele publicou bimestralmente ao longo de 14 anos na Folha de S. Paulo. Para alguém que, como eu, há dois anos vem enfrentando a tarefa de escrever uma coluna mensal, o livro é um alento.

Burke consegue escrever sobre temas complexos de maneira simples, tanto que torna qualquer tema de história interessante para o leitor de jornal. Ele passeia por temas variados com a leveza de quem quer apenas sugerir temas interessantes para uma conversa de domingo, mas ao mesmo tempo deixa pulgas atrás da orelha daqueles que, por interesse ou dever de ofício, querem ir mais longe – é o tipo de texto que qualquer colunista gostaria de escrever quando crescer.

Burke tem o tipo de texto que qualquer colunista gostaria de escrever quando crescer

O inglês é especialista em história cultural e um dos primeiros historiadores a se dedicar ao estudo da história dos livros e da leitura. Não surpreende que a própria leitura seja um de seus temas favoritos. Em uma das colunas, Burke se pergunta justamente se a leitura teria uma história.

A pergunta tem, de certa forma, uma resposta óbvia: tudo tem uma história, do lixo à limpeza, como mostram os temas de seus próprios artigos. Mas, se é fácil reconhecer a historicidade da leitura, não é tão simples evidenciá-la, j que a leitura não tem um objeto tão definido como o caso dos livros, por exemplo.

Alguém que faz história dos livros pode estudar desde o livro físico – como são impressos, quando deixaram de ser rolos, o tipo de papel usado – até seu comércio e circulação, o que inclui a fascinante história das bibliotecas, públicas e privadas.

Como as pessoas leem?

Mas e a leitura? Burke argumenta ser esta uma questão vaga, maleável e ilusória (p. 228). Como as pessoas leem? Com os olhos, por certo, mas também com os dedos. Nós marcamos livros, amassamos páginas e, para felicidade dos especialistas, sublinhamos, iluminamos palavras com canetas coloridas, escrevemos comentários ao lado de trechos.

Mas esse fenômeno de uso do livro como objeto pessoal, quase a ser degustado, seria feito por muita gente? Talvez não. E, de qualquer modo, precisa ser feito por quem sabe ler, e por quem lê sozinho, o que não é o caso de todo mundo.

Lançamentos recentes
Dois lançamentos recentes do mercado editorial brasileiro que vão agradar a quem se interessa pela história dos livros e da leitura (reprodução).

Bom, aqui já temos matéria prima para uma boa história da leitura. Pessoas leem juntas? Separadas? A leitura coletiva era importante para os indivíduos dos séculos 17 e 18? Quando nossa leitura passou a fazer parte das atividades cotidianas, indispensáveis a nosso dia a dia? E a partir de quando a alfabetização será medida também pelo domínio do universo digital?

Quando a leitura passou a fazer parte das atividades cotidianas indispensáveis?

Parte destas perguntas também são sugeridas pelo americano Robert Darnton, outro grande especialista em história cultural, dos livros e da leitura (citemos Roger Chartier e a tríade internacional dos estudiosos do assunto fica completa), que acaba de lançar em português seu A questão dos livros: passado, presente e futuro pela Companhia das Letras.

Em um capítulo sugestivamente intitulado “Os mistérios da leitura”, ele afirma ser esta um tema traiçoeiro (p. 169), principalmente quando os pesquisadores pretendem entender como os leitores do passado compreendiam o que liam, ou seja, desvendar suas visões de mundo e modos de pensar.

Darnton é famoso por seus trabalhos sobre o século 18 francês, principalmente sobre o Iluminismo, circulação de ideias – e, claro, de livros. Mas é do lugar de diretor da biblioteca da Universidade Harvard (EUA) que ele se dirige a seus leitores, preocupado com o Google, e com o futuro dos livros impressos, dor de cabeça também compartilhada por Burke, o que no chega a ser nenhuma coincidência.

Burke e Darnton têm tantas afinidades que dividiram uma sessão de debates na última edição da Festa Literária de Parati (Flip). Quem foi, viu dois apaixonados por livros que não querem vê-los transformados em meros objetos de colecionadores.

O leitor do futuro

Nesse campo – o do futuro dos livros e do leitor do futuro –, é Darnton quem nos dá mais elementos para pensar. Questionando-se se a internet não seria apenas mais uma mídia a concorrer com outras já existentes, sem necessariamente eliminá-las, ele é categórico: não. (p. 14).

Para ele, estamos diante de uma revolução tão importante quanto a da invenção da imprensa, no século 15. Que ainda não tem caminhos definidos e causará surpresas a muitos de nós, como causou a Niccol Perotti, classicista italiano, em carta escrita em 1471 e transcrita por Darnton, a propósito do novo tipo de escrita trazido da Alemanha:

“Como agora qualquer um é livre para imprimir o que desejar, em geral desconsideram aquilo que é melhor e escrevem, meramente para se divertir, aquilo que ficaria melhor se fosse esquecido ou, melhor ainda, apagado de todos os livros. E, mesmo quando escrevem algo digno, distorcem e corrompem aquilo até um ponto em que bem melhor seria não dispor de tais livros em vez de ter mil exemplares espalhando falsidades pelo mundo todo.” (p. 15)

Kindle no ônibus
Como as novas tecnologias transformarão nossos hábitos de leitura? Mulher lê um Kindle, leitor de livros eletrônicos produzido pela Amazon, em transporte público (foto: Flickr.com/arecknor – CC 2.0 BY-NC-ND).

O que acharia Perotti de blogues em que cada um pode escrever o que quiser? Ou de livros que, em vez de mil exemplares espalhando falsidades pelo mundo todo, têm edições ilimitadas, já que estão on-line? O olhar de Perotti é pessimista para o futuro, assim como o de muitos contemporâneos, que não veem com bons olhos a escrita rápida dos torpedos e muito menos a leitura fragmentada de textos eletrônicos.

Já não temos como saber o que Perotti acharia de tudo isso, mas não seria nada mal ler uma coluna de Peter Burke a respeito do leitor digital e da dúvida que a tantos assola: leremos mais ou menos no futuro?

Em tempo: sugestão para a próxima edição de O historiador como colunista: registrar as datas em que as colunas foram publicadas, além de fornecer mais informações para os leitores sobre o próprio processo de edição – curiosamente, tão caro aos historiadores do livro e da leitura.

Dividido em quatro partes (“Pessoas e livros”; “Ideias e mentalidades”; “A história social do cotidiano” e “Lendo a cultura”), o livro não traz qualquer pista sobre a data original de publicação, para além de uma ou outra referência a algum acontecimento recente. Inferimos que as introduções a cada parte tenham sido escritas especialmente para o livro, assim como a última coluna, denominada “Perdido (e achado) na tradução”, mas, sem alguma imaginação, não temos como saber!

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro