Estamos vivendo um período de seca intensa em várias regiões do país, com níveis de umidade em São Paulo frequentemente inferiores aos do Saara. Isso estimula queimadas e sua propagação. Este ano, houve quase o dobro de focos que em 2009.
Um dos inúmeros efeitos dessa falta de chuvas é a redução do volume dos reservatórios que compõem nossa matriz energética, majoritariamente hidrelétrica e, portanto, dependente dos caprichos de São Pedro, El Niño, La Niña e outros.
O fato foi notícia de primeira página. Mas só na matéria interna aparecia o complemento de que isso levou o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) a acionar as usinas termelétricas, de quilowatt mais caro e emissões de gases de efeito estufa muito mais intensas.
Com isso, fecham-se um pouco as comportas das hidrelétricas, retendo-se mais água em seus reservatórios, para garantir eletricidade para abastecer o futuro próximo, que a Deus pertence. Com isso, também ficam mais distantes as metas arrojadas apresentadas pelo Brasil na COP-15 em Copenhague quanto à redução de nossas emissões de carbono.
E as queimadas?
Pois então, as queimadas, velhas companheiras do Brasil arcaico, continuam firmes e fortes. Permitem a derrubada da floresta para a abertura da rocinha do caboclo que não teria como realizar a tarefa por meios mecânicos, ou para a abertura de pastos para o fazendeiro vizinho, ou para campos de soja, a um custo direto muito inferior ao da remoção mecânica.
Os críticos da crítica ao método dirão que os ameríndios já o utilizavam. É verdade. Em pequenas áreas, não contíguas, por pouco tempo, em consórcios vegetais. Só retornavam à mesma área cerca de 30 anos depois, tempo de repouso que, por observação, tentativa e erro, concluíram ser exigido pelo solo para retornar aos níveis anteriores de fertilidade.
Mas por que a queimada reduz a fertilidade do solo? Os solos tropicais são muito antigos, nunca estiveram sujeitos à glaciação e, portanto, estiveram esse tempo todo expostos aos rigores da chuva, vento e calor. É quase milagroso que ainda contenham algum nutriente depois de um banho tão demorado.
Se ainda têm, é porque a vida é teimosa, e consórcios de bactérias, fungos, plantas e animais conseguiram, com estratégias inacreditáveis, transformar a paisagem aos poucos. Essa luxuriante vegetação vive mais de si própria do que das benesses do solo a seus pés. Este tem poucos sítios de ligação disponíveis para nutrientes e outros cátions benéficos, como nitrogênio, fósforo e potássio.
Os últimos acabam sendo deslocados de seus confortáveis sítios à força, pela enxurrada de cátions introduzidos brutalmente pelas cinzas da queimada. Os preciosos nutrientes acabam então sendo lavados pela próxima chuva, reduzindo a fertilidade do solo e a sustentabilidade da agricultura ali praticada.
É uma espécie de tiro no pé: os rendimentos cairão e será necessário recomeçar tudo outra vez, ali mais adiante, caso alguém já não tenha tido a mesma idéia. E assim vamos passeando pelo país com nossos cultivos e rebanhos itinerantes, comendo mata pela frente e deixando solo exausto para trás – enquanto houver floresta pela frente e isso trouxer lucro, prestígio e atrair moças jovens e bonitas.
Menos fertilidade, menos saúde
No caminho, além de lixiviar nutrientes para os rios, vamos emitindo muitas toneladas de carbono particulado e gasoso para a atmosfera. Isso fora os compostos de nitrogênio e enxofre que, de nutrientes no solo ou na biomassa, passam a matéria-prima aérea para a formação de acido nítrico e sulfúrico, gerando a famosa chuva ácida.
Mas nem é preciso chuva ácida para que a saúde humana sofra com as queimadas: as partículas em suspensão na fumaça – particularmente as menores, que penetram nosso sistema respiratório mais profundamente – e os milhares de produtos de combustão sabidamente cancerígenos, mutagênicos ou disruptores endócrinos que esta fumaça contém, provocarão picos sazonais de internações em clínicas e hospitais. Particularmente das fatias mais vulneráveis da população, ou seja, as crianças e os idosos.
Sobram os adultos, que estarão bastante ocupados indo e vindo na tentativa de cuidar das duas fatias em questão sem perder o emprego. Correm o risco adicional de acidentes de carro neste ir e vir, devido à visibilidade drasticamente reduzida. Não podem pedir ajuda dos parentes no estado vizinho porque o aeroporto está fechado para pouso e decolagem.
Não é delírio de colunista, estou falando de Porto Velho nas últimas semanas. Meus numerosos colegas na cidade fazem relatos apocalípticos da situação na região. A universidade federal local suspendeu as aulas por duas semanas. Parece que o ar melhorou um pouco nos últimos dias. Ah, bom…
Legislando sobre a morte
Mas isso não é notícia, porque é rotina. Todo ano, na época da seca, o Brasil pega fogo. Na Amazônia, para queima de pastos e matas, no Pantanal, no centro-sul idem, com predominância de pastos, porque as matas estão escassas por ali. Esses fogos geram o que um produtivista chamaria de fumaça de biomassa, um biólogo, fumaça de biodiversidade, e um médico, fumaça letal. E todo mundo parece achar normal.
E é mesmo, acontece todo ano, na mesma época do ano, e desde 1500 e pouco. Portanto, atende os requisitos estatísticos e de senso comum do termo pelo menos desde então.
Um foco intenso de queimadas é o estado de São Paulo, que abriga 75% dos 5 milhões de hectares de canaviais do país. Antes da colheita, 80% desta área é queimada para facilitar o corte e reduzir o teor de água da cana (leia-se, peso e custo de transporte).
Cidades como Piracicaba têm 60 a 70% de sua economia girando em torno da cana. Têm também nível médio de partículas em suspensão no ar de 56 microgramas por metro cúbico, quando o Conselho Nacional de Meio Ambiente recomenda um máximo de 50. Na entressafra, o valor cai para 28, e na época da queimada, sobe a 88.
Os impactos positivos da indústria sucroalcooleira na economia local e nacional são bastante divulgados. Os folders não mencionam se os benefícios líquidos alardeados consideraram os custos ambientais e de saúde publica. Quanto custa a fogueira para o SUS? Há fartura de modelos que permitem prever o número de mortes em excesso para cada nível de poluição atmosférica, acima de certo limiar.
Mas parece que de fato os diversos problemas respiratórios de que a população é vítima tornam sua voz inaudível. Senão vejamos: em 2001, uma lei do estado de São Paulo prorrogou o fim das queimadas, antes estipulado para 2008. Estendeu até 2021 o prazo para áreas mecanizáveis, por serem relativamente planas e com extensão acima de 150 hectares, e até 2031 para as não mecanizáveis, por serem pequenas e acidentadas.
Caramba, 2031, mais 21 anos de nebulizador, e sem poder esticar roupa no varal fora de casa… Em compensação, o carro usado, branco, foi uma pechincha. Chamam isso de desenvolvimento. Sei não…
Luz no fim da chaminé?
Mas nem tudo são espinhos. Em 2008, outro governador do estado de São Paulo alterou a lei e reduziu o prazo para 2014. Segundo autoridades e produtores, nessa data o estado já colhia cerca de 50% da cana de forma mecanizada e sem queimadas.
Crianças, adultos e velhinhos agradecem e aguardam ansiosos e ofegantes pelos outros 50%.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro