Todo mundo sabe intuitivamente o que é a inteligência. O difícil é defini-la com rigor científico. Será a capacidade de resolver problemas? Ou a percepção de emoções sutis dos outros? A habilidade matemática? Talento oratório? Ou a capacidade de compor música?
A variedade de habilidades humanas indica que a inteligência não é uma só, e que as pessoas podem ser excelentes em um aspecto e não tão boas em outros.
De fato, o psicólogo norte-americano Howard Gardner, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, considera que a inteligência é mesmo múltipla e propõe que seus tipos principais são: inteligência espacial, linguística, lógica-matemática, corporal, musical, interpessoal, intrapessoal, naturalística e existencial. Há evidências de que essas “especialidades” cognitivas sejam verdadeiras, mas não há garantias de que sejam as únicas. A lista pode aumentar.
A proposição de Gardner foi um avanço, pois permitiu valorizar mais os diferentes talentos humanos e estudá-los mais pormenorizadamente com instrumentos da psicologia e da neurociência. Além disso, serviu como um antídoto para o exagero da adoção do QI (quociente intelectual) como única medida da inteligência.
O QI foi inventado em 1912 pelo psicólogo alemão William Stern (1871-1938), com o objetivo de avaliar o desempenho escolar de crianças para que fossem desenvolvidas alternativas educacionais segundo a nota que recebiam. Modificado inúmeras vezes, o índice esteve envolvido em controvérsias candentes com conotações políticas, pois foi também utilizado para justificar políticas sociais baseadas na eugenia, que presumiam que a inteligência era determinada exclusivamente pela carga genética de cada indivíduo.
Fato é que o QI – modernizado com o emprego de ferramentas estatísticas mais apuradas – continua a ser utilizado amplamente para avaliar a “inteligência global” das pessoas, tomando-se a precaução de separar os indivíduos testados por grupos de idade, padrão social, escolaridade, cultura, nacionalidade e outros parâmetros.
Relacionando a inteligência ao cérebro
Levando em conta essas sutilezas na medida da inteligência, seria então possível buscar a relação entre ela e o cérebro?
Não há mais dúvida de que o cérebro representa a base material para a cognição, sendo, portanto, logicamente concebível buscar na sua estrutura e no seu funcionamento a natureza da inteligência.
Temos então um outro problema. Que aspectos da organização cerebral deveriam ou poderiam ser utilizados no estudo da determinação biológica da inteligência? Os primeiros neurocientistas, carentes de técnicas sofisticadas, empregaram medidas globais como o peso e o volume do encéfalo e suas grandes regiões. Depois, com as modernas técnicas de neuroimagem, tornou-se possível avaliar regiões mais restritas e até mesmo microrregiões que podiam chegar a poucos milímetros cúbicos.
Destacou-se recentemente nesse tipo de estudo o grupo dirigido por Arthur W. Toga, da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Estados Unidos). No laboratório de Toga, Eileen Luders e outros colaboradores realizaram uma série de estudos com o objetivo de correlacionar aspectos estruturais do cérebro humano com a inteligência dos sujeitos.
Como o grupo de indivíduos escolhidos foi sempre controlado quanto ao sexo, escolaridade e idade, sendo todos (homens e mulheres entre 16 e 44 anos de idade) norte-americanos educados no país, procurou-se assim minimizar os efeitos sociais que influenciariam as medidas de QI. Estas, por outro lado, abrangeram cerca de 10 subtestes, que cobriam os diversos aspectos da cognição.
Para os exames de imagem, eles empregaram medidas de ressonância magnética, que permitiram avaliar não apenas o volume total do encéfalo, mas também o volume total da substância cinzenta (onde se encontram os neurônios e as sinapses) e da substância branca (onde se encontram as fibras que intercomunicam as diferentes regiões).
Ainda mais especificamente, avaliaram a espessura do córtex cerebral em todas as suas microrregiões, bem como o seu grau de convolução (o conjunto das dobraduras da superfície), e mesmo a espessura do principal canal de fibras que interliga os hemisférios cerebrais.
A medida da inteligência
Ao analisar os resultados do experimento, a primeira observação que os pesquisadores fizeram é que não houve correlação negativa entre as medidas da inteligência e as do cérebro, só correlações positivas. Isso significa que quanto maior era a medida do cérebro, maior era também o QI do indivíduo.
Os dados mostraram que essas correlações positivas eram verdadeiras para o cérebro como um todo, mas também para a substância cinzenta, que realiza o processamento de informações, e a substância branca, encarregada da transferência de informações entre as regiões cerebrais.
Mais especificamente ainda, a espessura do córtex cerebral pôde ser medida para as diferentes áreas corticais e relacionada às medidas de QI. Encontrou-se correlação positiva nas áreas frontais e temporais, especialmente na região de confluência entre o lobo temporal e o lobo occipital. O grau de convolução apresentou padrão semelhante para a região têmporo-occipital do córtex cerebral.
Que teria então essa misteriosa região de tão importante para a inteligência? Sugeriu-se que aí estaria o polo de convergência (um hub, no jargão da computação) entre o fluxo de informações visuais analisado pelas regiões occipitais e os conceitos linguísticos mais elaborados, cujos “dicionários” ficariam no córtex temporal inferior.
Os pesquisadores da Califórnia fizeram ainda avaliações morfométricas do corpo caloso, o enorme feixe com 200 milhões de fibras nervosas que interliga os hemisférios cerebrais. O corpo caloso é essencial para permitir que o nosso hemisfério esquerdo – responsável pelos aspectos racionais e lógicos da linguagem, bem como pelo processamento analítico, detalhado, das informações provenientes do mundo – converse com o hemisfério direito, mais voltado para os aspectos emocionais e holísticos da inteligência.
Pois bem, encontraram também correlação positiva entre a espessura desse grande feixe de fibras em certos locais (ou seja, mais fibras) e a inteligência do portador. Isso significa que um maior número de fibras calosas contribui para maior interatividade entre os hemisférios especialistas, o que agiliza o processamento mental.
Cautela na interpretação
Bem, é preciso certa cautela na valorização desses resultados. As correlações são muitas, e todas são positivas, sugerindo que quanto maior a dimensão do cérebro, do córtex ou de algumas de suas regiões, maior a inteligência do indivíduo.
Mas correlações, a rigor, podem representar apenas uma coincidência no comportamento de duas variáveis, o que não significa que uma seja a causa da outra. Bastaria um exemplo jocoso. Desde os anos 1950, aumentou a poluição em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nesse mesmo período aumentou a criminalidade. Uma correlação positiva, para a qual seria possível encontrar significância estatística. No entanto, ninguém considerará provável que a causa do aumento da criminalidade nas grandes cidades brasileiras seja a poluição…
A favor dos trabalhos do grupo de Toga, entretanto, está o grande número de variáveis estruturais do cérebro correlacionadas com as também numerosas medidas de QI. Além disso, outro conjunto forte e numeroso de estudos com pacientes neurológicos define uma relação de causa e efeito entre o cérebro e as capacidades cognitivas humanas.
De qualquer modo, o charme da ciência é justamente o valor superior das perguntas sobre as respostas: cada novo resultado é melhor quando gera mais perguntas!
K.L. Narr e colaboradores (2007). Relationships between IQ and cortical gray matter thickness in healthy adults. Cerebral Cortex, vol. 17: pp. 2163-2171.
E. Luders e colaboradores (2008). Mapping the relationship of cortical convolution and intelligence: effects of gender. Cerebral Cortex, vol. 18: pp. 2019-2026.
E. Luders e colaboradores (2009). Neuroanatomical correlates of intelligence. Intelligence, vol. 37: pp. 156-163.
E. Luders e colaboradores (2010). The link between callosal thickness and intelligence in healthy children and adolescents. Neuroimage, publicação eletrônica em 13 de outubro.
Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro