Abra um manual qualquer de história, desses de ensino médio. Qualquer um. Veja o que há escrito sobre a Questão Christie. Eu sei. Se você não está fazendo Enem ou vestibular, você não tem a menor ideia do que seja a Questão Christie.
Para refrescar a memória: estamos em 1861, ano em que o veleiro britânico ‘Prince of Wales’ encalhou na costa do Rio Grande do Sul, quando seguia em direção a Buenos Aires. A tripulação abandonou o navio e alguns foram pedir ajuda na cidade de Rio Grande. Enquanto isso, a população local resolveu apoderar-se da carga. Quando voltaram ao navio, os marinheiros encontraram dez dos seus companheiros mortos na areia.
William Christie, então embaixador britânico no Brasil, foi imediatamente avisado. Ele apresentou uma reclamação formal do governo britânico a D. Pedro II, imperador do Brasil, e exigiu que o governo brasileiro pedisse desculpas e indenizasse os ingleses. O imperador não fez nada.
No ano seguinte, no Rio de Janeiro, dois integrantes da Marinha Real Britânica, aparentemente embriagados e em trajes civis, envolveram-se em uma briga com marinheiros brasileiros. Ao que parece, era briga por mulher. Mas não importou. A polícia prendeu os dois por uma noite.
Dois dias depois, o governo brasileiro enviou uma nota ao embaixador britânico, o mesmo Christie, solicitando que os marinheiros ingleses fossem colocados à disposição das autoridades brasileiras, para que fossem julgados no Brasil. Christie não só negou o pedido – na época, os ingleses residentes no Brasil eram julgados pela Justiça de seu próprio país – como ainda foi ter novamente com o imperador. Ele disse que, se a indenização pela carga do navio naufragado não fosse paga e os marinheiros brasileiros envolvidos na confusão não fossem detidos, a Marinha Real Britânica bloquearia a entrada da baía de Guanabara.
D. Pedro II não quis nem saber. Se os ingleses quisessem, que viessem; os brasileiros estavam prontos para a guerra. Nesse mesmo ano de 1862, chegou ao Rio de Janeiro uma esquadra de guerra britânica que bloqueou o porto, apreendeu cinco navios brasileiros e exigiu o pagamento de 3,2 milhões de libras esterlinas como indenização aos prejuízos causados aos ingleses. O que também não foi feito.
A população brasileira começou a protestar e ameaçar com represálias cidadãos britânicos residentes no país. Daí em diante, as relações azedaram de vez: diante das tensões diplomáticas e dos pedidos de indenização – o Brasil também pediu indenização e exigiu desculpas pela apreensão de embarcações brasileiras por ingleses em 1863 –, as duas partes concordaram que o rei Leopoldo I da Bélgica arbitrasse o conflito.
Como se acreditava que Leopoldo I fosse favorecer os ingleses, o Brasil acabou pagando a indenização antecipadamente aos britânicos. Mas não foi o que aconteceu. O rei belga deu parecer favorável aos brasileiros, mas os ingleses não devolveram o dinheiro e só pediram desculpas dois anos depois.
Esse imbróglio, conhecido como ‘Questão Christie’, foi o o ápice do endurecimento das relações entre Brasil e Inglaterra, ácidas durante todo o século 19 por conta do comércio de escravos, que a Inglaterra condenava e, a partir de 1845, abertamente reprimia, e que o Brasil, quase tão abertamente quanto, defendia.
Pouco caso
Mas o curioso de tudo isto é que o episódio ficou marcado, nas narrativas sobre o assunto, como tendo sido um incidente que só teria ganhado maiores proporções devido às disputas pela honra pátria: o Brasil teria ferido a honra inglesa, desrespeitando os marinheiros britânicos, e estes, por sua vez, teriam ferido a honra nacional brasileira.
Essa interpretação foi construída, inclusive, no momento em que tudo aconteceu: as charges das revistas de época mostram Christie tanto interventor quanto exagerado, dando mais importância ao episódio do que ele, de fato, teria tido.
As leituras de época fizeram escola entre os historiadores, que nunca prestaram muita atenção à importância da questão Christie. Isto, até agora. Novas pesquisas sobre as relações internacionais no Império brasileiro vêm mostrando que os episódios ocorridos entre 1861 e 1865 foram apenas o estopim de um quadro de tensão que vinha há muito tempo se agravando.
Isto é o que demonstram historiadores como Beatriz Galotti Mamigonian, professora da Universidade Federal de Santa Catarina, e Daryle Williams, professor da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, que proferiu a palestra ‘Repensando a Questão Christie: africanos, cidadania, e nação no conflito anglo-brasileiro’, no 3º Congresso Internacional do Pronex ‘Dimensões e fronteiras do Estado brasileiro no século XIX’, que aconteceu esta semana na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Combate/defesa da escravidão
Daryle Williams mostrou que a Questão Christie foi muito mais do que uma disputa em torno da honra nacional acirrada pelo sentimento popular antibritânico. Ao longo das décadas de 1840 e 1850, Christie e seus antecessores no Brasil denunciaram continuamente as tentativas brasileiras de desrespeitar a própria legislação brasileira contra o tráfico de escravos, não só por continuar a introduzir africanos escravizados no Brasil, mas também por manter em regime de cativeiro até mesmo aqueles africanos considerados, pelo Estado brasileiro, livres.
Além disso, principalmente depois de 1850, quando o tráfico de escravos foi abolido pela segunda vez no Brasil, Christie suspeitava abertamente da sinceridade do comprometimento brasileiro com o fim do tráfico. Foi isto o que ele escreveu em seu livro Notes on Brazilian questions, publicado em 1865.
Nele, Christie argumenta que os episódios que geraram a chamada Questão Christie não seriam nada se não houvesse um grande ressentimento de setores poderosos da sociedade brasileira diante da atuação dos ingleses em geral, e a sua em particular, contra o tráfico de escravos e a escravidão no Brasil.
É claro que o livro de Christie, que, curiosamente, nunca mereceu muita atenção nas análises sobre o conflito, pode ser lido como uma narrativa pessoal e autojustificatória sobre os eventos.
Mas reduzir sua argumentação a um texto autolaudatório seria mais do que simplista. Seria deixar de ver que o que estava em jogo na crise de 1863 com a Inglaterra era a defesa da escravidão. Ou, para citar o título do mais recente livro de Sidney Chalhoub – que também menciona o livro de Christie –, o que estava em jogo era a força da escravidão no Brasil.
Em um quadro de forte sentimento antibritânico existente havia décadas, Daryle Wiliams mostrou que foi por denunciar as tentativas de burlar a proibição ao tráfico negreiro e a escravização ilegal de africanos e seus descendentes na década de 1850 que Christie e outros diplomatas britânicos caíram em desgraça no país e fizeram com que os incidentes de 1863 ganhassem uma proporção muito maior do que mereciam.
Afinal de contas, ainda por anos a fio, a defesa da escravidão seria uma questão de honra no Brasil.
Em tempo: se você, que está fazendo vestibular, chegou até aqui na leitura, já sabe o que responder na próxima vez que se deparar com uma dessas questões de múltipla escolha sobre a Questão Christie. A resposta certa não é ‘incidente diplomático envolvendo marinheiros britânicos embriagados no Brasil’.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro