Mais duas boas razões para dormir

Se você ainda é daqueles que acham que dormir é perda de tempo, anote essas: o sono, além de recuperar memórias do que você aprendeu durante o dia, também permite reconsolidar memórias já formadas e ’usadas’ recentemente. As descobertas, feitas por dois grupos independentes nos EUA, estão relatadas na revista Nature de 9 de outubro.

Já se sabe que uma noite de sono é essencial para a consolidação da memória, ou seja, para que o cérebro torne mais estáveis as modificações em suas conexões que começam a ser feitas durante o aprendizado. Até agora, os benefícios de uma noite bem dormida pareciam se aplicar exclusivamente às tarefas treinadas ao longo do dia. Faz sentido: por mais que se durma, não dá para o cérebro consolidar melhorias nos ’circuitos neurais para tocar o Concerto para piano número 1 de Grieg’ se tudo o que você treinou durante o dia foi o Vôo do besouro de Korsakoff.

Mas nem sempre é assim. Daniel Margoliash e seus colaboradores, da Universidade de Chicago (EUA), acabam de mostrar que, no terreno do processamento da linguagem, o cérebro sabe, sim, generalizar o aprendizado de sons treinados a outros sons nunca percebidos antes — e essa generalização do aprendizado acontece durante o sono.

Os pesquisadores pediram a voluntários adultos que tentassem reconhecer palavras lidas por um computador, com um daqueles programas sintetizadores de voz que lêem automaticamente o que estiver num arquivo de texto. Se você já experimentou, certamente notou que a ’fala’ do computador parece a princípio irreconhecível; é preciso certa prática para compreendê-la.

A equipe de Margoliash testou a capacidade de voluntários para reconhecer, após um treino inicial, sons aprendidos durante a prática, mas agora apresentados em palavras ainda não pronunciadas pelo computador. Imediatamente após o treino, a melhora no reconhecimento de palavras era considerável; ao longo do dia, no entanto, o desempenho dos voluntários caía, até que apenas um leve resíduo de melhora parecia evidente no fim da tarde. E aqui veio a descoberta: uma noite de sono subseqüente parece ser necessária e suficiente para resgatar o benefício do treino.

É como se o cérebro treinasse, então ’desaprendesse’ ao longo do dia, mas pudesse resgatar as novas memórias com uma noite de sono. Além da função de consolidação da memória já demonstrada em outros estudos, portanto, o sono parece também permitir a recuperação de traços de aprendizados que de outra forma já iam por água abaixo. Se você ainda tinha dúvidas, quem ’perde’ um terço da vida dormindo, portanto, leva uma vantagem considerável no quesito aprendizado e memória.

Mas não basta dormir a primeira noite para que o aprendizado se instale eternamente firme e forte no cérebro. Nas páginas seguintes da mesma edição da Nature, um grupo do laboratório do neurocientista Robert Stickgold, da Escola de Medicina Harvard (EUA), demonstra que o simples fato de ’usar’ uma memória já instalada e consolidada anteriormente faz com que tudo comece de novo: a memória antiga se torna vulnerável a modificações, e precisa passar por um novo período de consolidação.

Em uma tarefa de aprendizado motor semelhante a um dedilhado ao piano, a equipe mostra que a simples passagem do tempo ajuda a estabilizar memórias novas recém-aprendidas e memórias antigas, ’reabertas’ e executadas ao piano; mas para que o treino produza melhoras efetivas na precisão dos movimentos dos dedos, só mesmo dormindo.

Se parece estranho tornar vulnerável uma memória já bem instalada no cérebro, a estratégia é na verdade crucial para quem se interessa por melhorar sempre. Já se sabia, aliás, que a memória não se parece em nada com fitas de vídeo que mostram sempre a mesma história cada vez que são tocadas: memórias mudam à medida que são usadas.

É exatamente a alteração de cada memória específica pelo simples fato de ela ser ’lembrada’ que faz com que o melhor exercício para a memória seja colocá-la em prática: como o uso fortalece as conexões envolvidas, quanto mais se lembra de uma coisa, mais fácil será lembrá-la no futuro.

E depois, é essa capacidade de aprender-e-consolidar-e-mudar-e-consolidar-de-novo que permite o aprimoramento contínuo daquela música que você já tocava direitinho, mas ainda podia tocar melhor. Desenhistas e alunos fazendo prova conhecem bem o problema: é difícil modificar um desenho ou uma resposta nem tão maravilhosos assim depois que já foi tudo passado a caneta…

Fonte: Fenn KM, Nusbaum HC, Margoliash D (2003). Consolidation during sleep of perceptual learning of spoken language. Nature 425, 614-616.

Walker MP, Brakefield T, Hobson JA, Stickgold R (2003). Dissociable stages of human memory consolidation and reconsolidation. Nature 425, 616-620.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia