É quase lugar comum aproveitar as efemérides do ano para os temas desta coluna. O assunto deste mês é quase óbvio: os 100 anos da descoberta da doença de Chagas. Em abril de 1909, Carlos Chagas, médico e pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, anunciou ao Brasil e ao mundo científico uma descoberta tripla: uma nova doença humana, seu agente causador – o protozoário Trypanosoma cruzi – e seu inseto transmissor – o popular “barbeiro”. A notícia foi imediatamente saudada como marco fundamental na história da ciência brasileira, “glória de Manguinhos”, como diria mais tarde Oswaldo Cruz.
Mas a história da descoberta da doença e da pesquisa sobre ela está longe de ser repleta de glórias. Duas vezes formalmente indicado ao Prêmio Nobel de Medicina, Chagas morreu, em 1934, sem ver a doença reconhecida como uma questão de saúde pública no Brasil.
- Capa do livro Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação, 1909-1962, de Simone Petraglia Kropf, publicado pela Editora Fiocruz.
Ainda hoje, embora o país tenha sido considerado livre da transmissão da doença pela principal espécie de vetor em 2006 pela Organização Mundial da Saúde, estima-se que em toda a América Latina 13 milhões de pessoas estejam infectadas sem saber, de acordo com a ONG Médicos Sem Fronteiras. No Brasil, 292 casos novos da doença de Chagas foram notificados entre 2006 e 2008.
Mais do que a efeméride em si, o interessante é pensar o processo histórico por trás da data redonda, ou melhor, o tortuoso percurso pelo qual a descoberta científica pôde, de fato, ser identificada, reconhecida e legitimada pela comunidade médico-científica como doença.
Pois bem: esse é mote do recém-lançado livro Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação, 1909-1962 (Editora Fiocruz), de Simone Petraglia Kropf, historiadora e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz.
Um processo histórico e social
Ao analisar o processo de transformação da doença de Chagas em doença, como ressalta Ângela Castro Gomes no prefácio da obra, a autora não se dedica apenas a reconstruir a trajetória de Carlos Chagas e seus estudos sobre a enfermidade, o que já seria suficiente para tornar o livro leitura obrigatória para todos os interessados no assunto. Em suas próprias palavras, seu objetivo ao estudar as pesquisas e as ações públicas sobre a doença de Chagas é “refletir sobre a dimensão histórica e social desse processo, no qual este fato científico foi sendo produzido e validado em estreita relação com vários grupos e esferas da vida social brasileira”.
Temos, assim, um trabalho que conjuga história social da medicina, história social da ciência e até a história do pensamento social brasileiro, uma vez que a própria caracterização da doença de Chagas foi, ao longo de boa parte do século 20, associada à imagem do Brasil.
Afinal, ao ser caracterizada, nos anos 1910, como a “doença do Brasil”, a doença de Chagas foi imediatamente alçada à condição de símbolo do país “doente e atrasado”. Mal que vitimava moradores pobres das áreas rurais, ela tanto serviu para construir a ideia de que, dos grotões do país, vinham os obstáculos ao progresso nacional, como motivou as campanhas de saneamento rural. Para que o país se civilizasse, era preciso enfrentar a precariedade das condições sociais e de saúde das populações rurais.
Nesse sentido, a publicação de artigos no jornal Correio da Manhã – que em 1918 seriam reunidos no livro Saneamento do Brasil –, por Belisário Penna, e do livro Problema Vital, por Monteiro Lobato, foi essencial para a sensibilização, no litoral, sobre as condições da vida no interior. Impossível encontrar melhor descrição do cenário do que a de Lobato no capítulo Três milhões de idiotas:
“O nosso tipo de habitação rural não varia de norte a sul. Paredes de pau a pique ripadas de taquara, barreadas a mão e colmadas de sapé, palmas ou cascas de árvore. O barro ao secar contrai-se e lagarteia-se de inumeráveis rachaduras – couto propício à ninhação de insetos domiciliários.
É nessas rachas que mora o barbeiro, nojento percevejo tamanho como a barata (…). Bebedor do sangue do homem e dos outros animais, o horripilante inseto noturno sai com as trevas da sua toca, aproxima-se das vítimas, distende o ‘fincão’ – tromba sugadora de fio navalhante – espeta-o na carne do adormecido e suga-lhe o sangue até cair para um lado de panturra cheia. Vivendo às centenas em cada casebre, ninguém lhes escapa à sanha. Belisario Penna conta que certa vez apanhou em flagrante delito de sucção, no corpo de uma pobre criança de quatro anos, dezesseis ninfas, taludas como baratas descascadas, e oito barbeiros adultos, além de mais de cinco que, fartos, já se apresentavam pesadamente para voltar ao esconderijo. Cada um deles sugando para mais de uma grama de sangue, e alternando-se na vampírica tarefa, é fácil imaginar o quanto perdia de sangue por noite essa criança – essa criança que não é “uma criança”, mas a criança do sertão brasileiro…”
Questão de saúde pública
A criança do sertão brasileiro, caso sobrevivesse, cresceria e envelheceria antes que o problema fosse atacado pelas autoridades brasileiras. A primeira campanha de combate aos barbeiros ocorreu apenas em 1950. E o Programa Nacional de Controle da Doença de Chagas data de 1980.
De 1909 a 1980, o percurso da institucionalização da doença de Chagas como objeto da ciência e da saúde pública não tem apenas como tema o descaso das autoridades – embora aqui elas ocupem o papel principal –, mas também o embate entre diferentes cientistas e médicos. Para alguns, a doença era restrita a certas regiões do sertão brasileiro e, para os discípulos de Carlos Chagas, uma questão de saúde pública, como de fato se reconheceu posteriormente.
- Barbeiro (‘Triatoma infestans’), inseto transmissor da doença de Chagas (foto: CDC).
Talvez Carlos Chagas ficasse surpreso com os desafios enfrentados hoje por seus seguidores, dificilmente imagináveis há 100 anos. Se o desmatamento no sertão mineiro levou para longe os barbeiros, interrompendo o ciclo de transmissão da doença na região, o mesmo desmatamento, conforme apontam pesquisadores da Fiocruz, pode ser responsável pela rápida expansão da endemia em regiões como a Amazônia, onde à devastação da floresta soma-se a precariedade das habitações. Só que, ao contrário do que acontecia em 1909, é inquestionável hoje o consenso sobre os males da doença de Chagas e sobre os efeitos do desequilíbrio ambiental. Inacreditável que essa situação não produza ações políticas com a mesma ligeireza com que afeta a população.
Em tempo: para saber mais sobre o assunto, além do livro de Simone Petraglia Kropf, não deixe de visitar as páginas virtuais da Fiocruz dedicadas a Carlos Chagas e ao centenário da descoberta da doença.
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro