Ana Christina sabia que era uma pessoa especial. Sua doçura, bondade, inteligência e bom humor impressionavam a todos. Além disso, sua aparência incomum – uma estatura elevada, mãos e dedos muito longos como se fosse uma pianista – chamavam a atenção. Como milhares de brasileiros que sequer sabem disso, ela era portadora da chamada síndrome de Marfan (SM), uma associação de diversos sintomas e características causados por defeitos genéticos. Embora essa síndrome seja conhecida há mais de um século, apenas recentemente sua biologia e suas implicações estão sendo compreendidas pela medicina.
À esquerda, o médico francês Antoine Bernard-Jean Marfan, que descobriu a síndrome que leva seu nome; à direita, o presidente norte-americano Abraham Lincoln, portador mais famoso da síndrome.
A SM é uma desordem genética resultante de uma mutação que afeta o autossomo 15 – um cromossomo não sexual, como o X e o Y – e é considerada dominante, isto é, ocorre mesmo se esse defeito genético surgir em apenas um dos representantes do par de cromossomos.
Estima-se que muita gente seja afetada pela síndrome de Marfan: cerca de pelo menos um em cada 5 mil indivíduos. O portador mais famoso da SM foi o presidente norte-americano Abraham Lincoln (1809-1865) – o mesmo que, devido a suas medidas antiescravagistas, levou seu país à guerra civil e foi assassinado com um tiro na cabeça em um teatro de Washington.
Essa anomalia genética não mostra predileção por raça ou condição geográfica e cerca de um quarto dos indivíduos portadores não apresentam uma história familiar, isto é, são afetados por novas mutações. O diagnóstico da síndrome é dificultado pelo fato de ela apresentar uma expressão variável entre seus portadores e por possuir características que podem ser confundidas com outras anomalias.
Descoberta há 110 anos
Essa síndrome foi descrita em 1896 pelo médico francês Antoine Bernard-Jean Marfan (1858-1942), após examinar uma menina de cinco anos de idade. Apesar de se ter descoberto posteriormente que a paciente não tinha a SM e sim uma outra anomalia genética, Marfan descreveu sua ocorrência e suas características distintivas em mais de 150 pessoas.
A síndrome de Marfan é caracterizada por uma mutação no gene envolvido na produção da fibrilina-1, representada acima (arte: NIH).
A ciência teve que esperar então mais de um século até que se demontrasse, em 1990, que a SM afeta o gene envolvido na produção de fibrilina-1 (FBN-1), uma proteína que é uma das principais componentes das fibras elásticas, presentes na substância amorfa (matriz extracelular) que envolve as células do tecido conjuntivo.
Essas fibras são responsáveis pela flexibilidade de nossos tecidos e órgãos, assim como pela manutenção dessas estruturas no local correto e pela conexão entre estruturas diferentes. Devido a sua ocorrência ampla, defeitos nessas estruturas geram conseqüências disseminadas por todo o organismo, incluindo esqueleto, pulmões, olhos, coração e vasos sangüíneos. É o que os geneticistas chamam de pleiotropia, ou uma mutação em um único gene – no caso, o FBN-1 – que causa efeitos em vários processos orgânicos.
Portadores da SM apresentam uma estatura avantajada, além de membros e dedos alongados, uma vez que não têm seu crescimento controlado pela ação das fibras elásticas. Além disso, os tecidos e órgãos dessas pessoas perdem a capacidade de se ajustarem às pressões a que são comumente submetidos. Por isso, os portadores de SM podem apresentar defeitos ósseos, ruptura da retina e de órgãos como fígado, baço e pulmões.
Problemas cardíacos
Cerca de três quartos da mortalidade dos pacientes com essa anomalia estão ligados com problemas cardíacos. Para o funcionamento correto do nosso sistema circulatório, as artérias que recebem o sangue impulsionado pelo coração têm que ter grande elasticidade para poderem se expandir e, logo depois, retornarem ao seu diâmetro normal, impulsionando durante esse ciclo o sangue para outras regiões do organismo.
As fibras elásticas são estruturas chave para essa flexibilidade. Por isso, portadores da síndrome de Marfan são acometidos de problemas nas válvulas cardíacas e por dissecações ou aneurismas da aorta, uma artéria localizada logo após o coração e, portanto, sujeita às maiores pressões hidrostáticas cardíacas.
Atualmente, vários avanços médicos, como o desenvolvimento de próteses aórticas e o uso de beta-bloqueadores para controlar o fluxo cardíaco, têm aumentado a expectativa de vida dos portadores da SM. Além disso, um esforço considerável tem sido feito para conscientizar o público sobre essa anomalia genética. Porém, muito ainda resta a ser descoberto sobre os mistérios da FBN-1 para que, no futuro, consigamos estar ao lado de pessoas especiais como Ana Christina.
Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line
30/06/2006