Metrônomos, coelhos e camundongos

Há quem diga que consegue, mas é praticamente impossível conversar e tocar piano ao mesmo tempo, ou falar no celular e dirigir com atenção. No entanto, bater um papinho enquanto se anda, passeia, ou até corre não é nada complicado — desde que você tenha fôlego, claro. Onde está a diferença?

Andar e correr, ao contrário de tocar piano ou dirigir, são comportamentos automáticos: basta começar e o sistema nervoso se encarrega de manter o bonde andando, sem que você precise ordenar “esquerda, direita, agora esquerda de novo, isso, agora direita…”.

Isso é possível graças aos chamados ’geradores centrais de padrões’, ou CPGs, na sigla em inglês: são verdadeiros metrônomos situados na medula espinhal que, ao receberem a ordem do cérebro para começar a andar, criam e enviam padrões ritmados e alternados de comando aos músculos que movimentarão repetitivamente pernas e braços. O sistema é capaz de se manter em funcionamento sozinho, sem que seja necessária uma supervisão constante pelo cérebro, e até de fazer pequenos ajustes automáticos, conforme a inclinação da rua muda ou a esteira ergométrica acelera.

A capacidade de se locomover sem dar muita atenção aos membros deve ser realmente importante, porque não é invenção humana. Gatos, ratos, peixes (o CPG foi descoberto originalmente na lampréia), rãs e até moscas-das-frutas possuem o equipamento necessário para correr, pular, nadar ou voar enquanto seus ricos neuroniozinhos cerebrais se dedicam a outras atividades.

A organização e o desenvolvimento do CPG em mamíferos eram grandes desconhecidos — até que um estudo australiano publicado em 1998 demonstrou que a deleção de um único gene do DNA de camundongos era suficiente para perturbar sua locomoção. Na verdade, um pouco mais do que isso: a deleção transformava a marcha dos roedores em legítimos pulos, dignos de canguru, empurrados simultaneamente pelas duas patas traseiras.

Por que a alteração da marcha? O gene deletado, apelidado EphA4, é membro de uma família de proteínas que regulam uma série de eventos durante o desenvolvimento do sistema nervoso, e particularmente a formação de conexões apropriadas entre regiões distantes. No estudo de 1998, os pesquisadores encontraram aberrações na conexão entre a medula espinhal e as regiões do cérebro que controlam os movimentos, e fizeram a suposição, bastante razoável, de que elas seriam a causa dos pulos dos animais.

Mas essa não era toda a história. Um estudo sueco publicado em 21 de março na revista Science mostra que nos animais sem EphA4 há um segundo defeito, mais embaixo. Para determinar se o CPG desses animais era normal, Klas Kullander, Ole Kiehn e seus colaboradores estudaram a medula espinhal isolada de camundongos recém-nascidos, livre da influência do cérebro. Nessa preparação, basta adicionar o neurotransmissor apropriado ao líquido que banha a medula para acionar diretamente o CPG, mesmo sem o cérebro para dar as ordens. Como resultado, o CPG gera impulsos elétricos e os envia pelos nervos que deixam a medula. Não há mais músculos que recebam os impulsos, mas os comandos podem ser registrados diretamente nos nervos.

Não deu outra: no camundongo sem EphA4, o CPG acionado diretamente na medula se comportava como o próprio animal. Um faz movimentos semelhantes e simultâneos com as duas patas traseiras, pulando como se fosse um coelho; o outro, mesmo na ausência de conexões já truncadas com o cérebro, envia aos músculos das patas traseiras ordens para se flexionarem simultaneamente, e não uma após a outra. O comando pode já não vir muito correto lá de cima, mas a coisa desanda de vez (literalmente!) no CPG da medula.

E o que, exatamente, faz tudo desandar? Os pesquisadores observaram que os animais sem EphA4 possuíam um número excessivo de fibras nervosas interligando as metades direita e esquerda da medula. Em camundongos normais, neurônios do CPG de cada lado da medula, ao entrar em ação, inibem os do outro lado, o que certamente contribui para a alternância dos movimentos de uma pata e outra. Ao entrar em ação nos animais sem EphA4, no entanto, os neurônios do CPG de cada lado da medula excitam os do outro lado, supostamente por meio das fibras em excesso que interligam as duas metades da medula. A excitação deve levar à sincronização das duas metades do CPG e, com ela, a um camundongo que pula feito um coelho.

Vai ver que a diferença entre o andar de camundongos e coelhos é, de fato, uma simples questão de equilíbrio entre os dois lados da medula, entre dois meios-metrônomos brigando por quem fala mais alto. Em camundongos normais, prevalece a inibição entre os dois lados, então as patas se movem alternadamente; em coelhos, pode ser que uma alteração na versão ’padrão’ da própria EphA4 acabe promovendo a sincronia entre os dois lados do CPG.

Por enquanto é só uma idéia. Mas bem que pode ser verdade, já que os genes de animais diferentes são apenas variações de um ancestral comum. Nós mesmos carregamos variações espontâneas dos genes ’padrão’, levados pela maioria. Olhando bem, deve haver por aí camundongos selvagens que andam feito coelhos, provavelmente devido a uma alteração espontânea em seus genes EphA4. Eu tive um cachorro assim: só sabia correr com as patas de trás juntas, como se fosse um coelho. Pensei que fosse algum problema menos específico, porque o bichinho era completamente neurótico. Mas pelo jeito era pura genética…

Fonte: Kullander K, Butt SJB, Lebret JM, Lundfald L, Restepro CE, Rydström A, Klein R, Kiehn O (2003). Role of EphA4 and EphrinB3 in local neuronal circuits that control walking. Science 299, 1889-1892.

Dottori M, Hartley L, Galea M, Paxinos G, Polizzotto M, Kilpatrick T, Bartlett PF, Murphy M, Kontgen F, Boyd AW (1998). EphA4 (Sek1) receptor tyrosine kinase is required for the development of the corticospinal tract. Proceedings of the National Academy of Science USA 95, 13248-13253.

Yokoyama N, Romero MI, Cowan CA, Galvan P, Helmbacher F, Charnay P, Parada LF, Henkemeyer M (2001). Forward signaling mediated by ephrin-B3 prevents contralateral corticospinal axons from recrossing the spinal cord midline. Neuron 29, 85-97.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia