Microscopia às cegas

Nossa capacidade visual depende primordialmente do cristalino, uma espécie de lente dos nossos olhos. Essa estrutura tem suas limitações. Nas melhores condições, não podemos enxergar, a olho nu, nada menor do que dois décimos de milímetro, o que equivale a 200 micrômetros.

Para observar objetos nessa escala micrométrica, temos que fazer uso de microscópicos, desde os mais simples, como os utilizados em laboratórios escolares (chamados de microscópicos óticos de baixa resolução), até os mais sofisticados microscópios eletrônicos. Todos esses microscópicos usam algum tipo de sistema de lentes para convergir luz visível (lentes óticas) ou feixes de elétrons (lentes magnéticas) e formar uma imagem em um plano focal perceptível a olho nu.

Em 1982, o físico alemão Gerd Binnig (1947-) e o físico suíço Heinrich Rohrer (1933-) apresentaram um modelo de microscópio sem lente, trabalho que lhes valeu o Prêmio Nobel de Física de 1986. O curto intervalo de tempo entre o feito e a premiação é uma boa medida da importância atribuída à invenção. O equipamento passou a ser conhecido como microscópio de tunelamento com varredura (STM, na sigla em inglês), porque se baseia no efeito túnel, propriedade que permite que o elétron atravesse um material (leia mais sobre esse efeito nas colunas de julho de 2007, setembro de 2009 e junho de 2011).

Leitura tátil

O funcionamento do microscópio de Binnig e Rohrer assemelha-se à forma como os cegos leem. O cego percebe o mundo usando seus sentidos táteis, o que levou o francês Louis Braille (1809-1852) a criar, em 1827, o sistema de leitura que leva o seu nome.

O microscópio de tunelamento funciona de modo inteiramente análogo ao sistema de leitura braile

Pois o microscópio de tunelamento funciona de modo inteiramente análogo a esse sistema, mas o ‘dedo’ do microscópio (tecnicamente denominado sonda) não chega a tocar na superfície analisada. Ele fica a alguns ângstroms (o ângstrom é a décima bilionésima parte do metro), distância suficientemente pequena para permitir a troca de cargas elétricas entre a superfície e a sonda por meio do efeito túnel. Portanto, ao se aplicar uma voltagem entre a sonda e a superfície, uma corrente elétrica circula entre as duas. Essa corrente é proporcional à distância que separa a sonda da superfície e requer que o material da superfície seja condutor.

Fazer a varredura, ou seja, fazer a sonda flutuar sobre a superfície a ser analisada é um procedimento idêntico ao que o cego faz com o seu dedo para reconhecer a topografia de uma área. Um circuito eletrônico controlado pela corrente de tunelamento, que circula entre a superfície do material e a sonda, aciona um sistema mecânico que movimenta a sonda na horizontal e na vertical. Então, é possível manter a sonda sempre à mesma distância da superfície, de modo que a topografia seja eletronicamente registrada pelo seu deslocamento vertical. Esses registros são transformados em imagens, com resolução nanométrica, por meio de complexos programas computacionais.

Imagem obtida por microscópio de tunelamento com varredura
Imagem de impurezas em uma superfície de ferro obtida por meio de microscópio de tunelamento com varredura. (foto: A. Davies, Joseph A. Stroscio, D. T. Pierce e R. J. Celotta/ Departamento de Comércio dos Estados Unidos)

Logo se percebeu que o microscópio de tunelamento faz mais do que exibir a topografia da superfície analisada. Ele pode também mapear propriedades físico-químicas dos átomos da superfície, a partir do efeito que elas têm sobre o valor da corrente de tunelamento.

Essa descoberta deu origem a diferentes tipos de microscópio de varredura, a começar pelo microscópio de força atômica (AFM, na sigla em inglês), também inventado por Gerd Binnig e colaboradores, poucos anos depois do STM. Diferentemente deste, o AFM é capaz de analisar também materiais não condutores e, dependendo do tipo de sonda, pode avaliar diferentes propriedades físico-químicas, além de obter a topografia superficial.

Por exemplo, se a ponta da sonda for confeccionada com material magnético, pode-se realizar um mapeamento dos domínios magnéticos da superfície do material analisado. O conhecimento da estrutura dos domínios magnéticos é muito importante para se determinar em que aplicações tecnológicas o material pode ser usado.

Fronteira tecnológica

A última geração de microscópios sem lentes é composta por dispositivos especialmente apropriados para análise de materiais biológicos, sobretudo os tecidos vivos. Esses equipamentos são conhecidos como microscópios de varredura de condutância iônica (SICM, na sigla em inglês) e seu princípio operacional é basicamente o mesmo do STM. Ou seja, uma sonda varre a superfície a ser analisada e é controlada eletronicamente de modo a fornecer informação sobre a topografia e sobre determinadas propriedades físico-químicas do material.

A diferença mais importante entre o SICM e o STM e seus descendentes é que, no primeiro, o espaço entre a sonda e a superfície é preenchido por um líquido, através do qual se estabelece a corrente iônica que dá nome ao equipamento. A existência desse líquido praticamente eliminou as chances de contato entre a sonda e a superfície, um risco presente nos microscópios anteriores e que resultava em danos irreversíveis nas amostras. Esse era um dos grandes empecilhos para o uso do STM em tecidos vivos.

Microscópio de varredura de condutância iônica
Diagrama de um microscópio de varredura de condutância iônica, usado para análise de tecidos vivos. (foto: Paul Venter/ Wikimedia Commons)

O primeiro protótipo de um SICM foi divulgado em 1989, mas empecilhos técnicos referentes ao controle de movimento e posicionamento da sonda em escala nanométrica, bem como a dificuldade de fabricação de nanossondas, retardaram o uso extensivo dessa tecnologia. Foi só a partir de 2009 que tais obstáculos começaram a ser superados.

O surgimento de um novo patamar tecnológico refletiu-se na quantidade de artigos publicados sobre o tema. A base de dados Web of Science registra menos de 10 artigos anuais sobre microscopia de condutância iônica entre 1989 e 2010. Em 2011, observa-se um salto importante: foram publicados 24 artigos. Apenas nos primeiros sete meses de 2012, esse número já chegou a 15.

Os microscópios de varredura de condutância iônica ocupam a fronteira de mais alto nível da análise multifuncional de tecidos vivos em tempo real

Os avanços tecnológicos recentes fizeram com que microscópios de varredura de condutância iônica ocupassem a fronteira de mais alto nível da análise multifuncional de tecidos vivos em tempo real. Além da obtenção de topografias superficiais em resolução comparável à dos microscópios de varredura anteriores, a técnica permite a identificação de transformações morfológicas induzidas por estímulos fisiológicos, bem como a identificação das rotas de comunicação intracelular. A literatura registra seu uso em análises de células cardiovasculares, células de câncer do cólon, microvilos (prolongamentos da membrana plasmática) de células epiteliais, entre outros tecidos vivos.

É preciso agora uma maior colaboração entre físicos, os principais responsáveis pelo desenvolvimento do microscópio de varredura de condutância iônica, e biólogos especialistas em superfícies celulares para promover o incremento científico e tecnológico desse equipamento e de seus usos.

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana