Mulheres que jogam bola

A coluna estava torcendo para que a Copa do Mundo culminasse nas aventadas semifinais sul-americanas, com a presença de Uruguai, Argentina, Paraguai e Brasil na reta final do campeonato.

Seria a vitória da poesia sobre a prosa realista dos ingleses e alemães e a prosa estetizante dos italianos, para usar a definição de Pasolini em um texto recentemente recuperado por José Miguel Wisnik (publicado em Les terrains: Écrits sur le sport e citado por Wisnik em Veneno remédio, p. 14 e 15).

Tomara que não precisemos de muita licença para definir o futebol brasileiro de hoje como poético, mas Pasolini não tem nada com isso: é bem provável que tenha escrito esta definição ainda nos bons tempos do futebol-arte.

De qualquer maneira, a presença de quatro times da América do Sul nas finais, além de feito absolutamente inédito, teria feito justiça à paixão que o esporte desperta em seus quatro cantos, principalmente no Brasil. 

Só recentemente a paixão despertada pelo futebol vem sendo traduzida em publicações sobre o tema

Paixão que, só recentemente, vem sendo traduzida em publicações sobre o futebol ou sobre esportes em geral.

Embora seja quase lugar-comum ressaltar o quanto o país do futebol pouco reflete sobre ele, vários lançamentos recentes vêm mostrando que sociólogos, antropólogos e historiadores, muitos dos quais especialistas em outros temas, não ficam imunes ao interesse despertado pelo esporte.

Para além dos textos de Roberto DaMatta, que praticamente fundou o campo nos anos 1970, isto vale para os livros A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura, de Hilário Franco Junior, Veneno remédio: o futebol e o Brasil, de José Miguel Wisnik e O crime do restaurante chinês: carnaval, futebol e justiça na São Paulo dos anos 30, por Boris Fausto, já abordado nesta coluna (os três da Companhia das Letras, publicados, respectivamente, em 2007, 2008 e 2009).

O primeiro autor é medievalista; o segundo, professor de literatura brasileira, músico e compositor; e o terceiro é estudioso da República brasileira.

Cada um dedicou sua carreira a outros objetos, mas todos se debruçaram sobre o futebol recentemente, assim como Cezar Guazzelli, especialista na Revolução Farroupilha e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Além de ministrar cursos e orientar trabalhos sobre o assunto, Guazzelli é até nome de taça no campeonato de seus alunos do Departamento de História da instituição.

Jogadora disputa bola
Com garra atrás da bola: homem ou mulher, que diferença faz? (foto: Jeremy Wilburn – CC BY-NC-ND 2.0).

Pesquisa ganha força

A esses nomes vêm se somar jovens historiadores como Leonardo Pereira, autor de Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938) (Nova Fronteira, 2000); Bernardo Buarque de Hollanda, que escreveu O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (7Letras; Faperj, 2010) e O descobrimento do futebol: modernismo, regionalismo e paixão esportiva em José Lins do Rego (Biblioteca Nacional, 2004); e, principalmente, Victor Andrade de Melo, professor de Educação Física e de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Victor coordena o laboratório de pesquisa Sport, hoje um dos principais locais de congregação de pesquisadores interessados na história dos esportes no Brasil. Entre outras atividades, o laboratório mantém a coleção de publicações Sport:História, destinada a publicar livros que tratem das práticas esportivas e de lazer.

Duas características saltam aos olhos: os livros falam sobre tudo, menos o jogo, e relacionam o futebol à identidade nacional

Bom exemplo, aliás, é o recém-lançado Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro (1830-1930) (Apicuri, 2010), organizado por ele e por Andrea Marzano.

Esse livro mostra não apenas como os cariocas lidavam com o esporte no Império e na Primeira República, mas também como era o lazer de homens e mulheres num tempo em que eram raras as diversões de massa.

Ao Sport, somam-se grupos de pesquisa como o Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade, da Universidade Federal do Paraná, e o Núcleo de Sociologia do Futebol da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Dessa produção recente, duas características saltam aos olhos: a primeira, observada por Wisnik, é a de que os livros sobre o futebol falam sobre tudo, menos sobre o próprio jogo:

“A esmagadora maioria dos livros, no entanto, por mais interessantes e esclarecedores que sejam, fala de futebol sem falar do futebol. O assunto é o entorno, aquilo que cerca, mobiliza, reage, produz, envolve, explora o mundo do jogo.” (p. 18)

A segunda, ressaltada por Bernardo Buarque de Holanda em “A história entra em campo” (ótima introdução ao tema, publicada no suplemento Sobre Cultura da Ciência Hoje), é a relação entre o futebol e a identidade nacional:

“A relação entre futebol e brasilidade é, sem dúvida, o aspecto mais recorrente na historiografia nacional. Pode-se dizer que a identidade nacional é o ponto quase obsedante da reflexão historiográfica, algo compreensível, pois o futebol mobiliza uma gama de questões cruciais no Brasil: o papel do Estado, a composição étnica do povo, o peso da representação regional na nacionalidade, a expansão dos meios de comunicação de massas e a construção da imagem de nação moderna.”

Pelada na praia
Pelada feminina na praia em Itacaré, na Bahia (foto: François Le Minh – CC BY-NC-ND 2.0).

E as mulheres?

Se essas duas características resumem mesmo a produção sobre o tema, cabe perguntar qual seria o lugar das mulheres na identidade brasileira. Não vou usar da crítica mesquinha de que as mulheres estão ausentes das análises sobre o futebol porque todos estes textos foram escritos por homens. 

Por esta ótica, mulheres não torcem, não vão aos estádios e não jogam bola. No máximo fazem pipoca

Mas, a julgar pelo que se lê, elas seriam tão coadjuvantes para a definição de brasilidade como as mães, avós e esposas de jogadores que aparecem na televisão em época de Copa do Mundo.

Por essa ótica, mulheres não torcem, não vão aos estádios e, sobretudo, não jogam bola. No máximo fazem pipoca nos dias de jogo e lavam as roupas de seus craques.

Claro que não é bem assim. Se as mulheres estão fora das reflexões sobre o futebol brasileiro contemporâneo, é urgente que entrem. Afinal, moças torcem, vão aos estádios e jogam bola, e, bem, desde muito antes do tempo em que a prática era literalmente proibida.

Futebol feminino
Time de futebol feminino treina em Piraju, São Paulo (foto: Luiz Gustavo Leme – CC BY-NC-SA 2.0).

Pouca gente sabe, talvez porque elas não tenham obedecido: mas a resolução 7/65 do Conselho Nacional do Desporto proibiu, em 1965, as mulheres de praticarem lutas, futebol, polo aquático, polo, rúgbi e beisebol. 

Ainda que tardia se comparada à Europa e aos Estados Unidos (mas este não conta muito, uma vez que, lá, o soccer é por tradição um esporte feminino), a participação feminina brasileira no mundo do futebol institucionalizado cresceu tão rapidamente, com a conquista do vice-campeonato mundial de 2007, que dá até para desconfiar que as meninas dominam a bola há muito mais tempo do que parece.

Por isso, mais do que tratar as mulheres como as excluídas do campo, ou relacionar o futebol feminino àquilo que ele não devia ser (objeto de preconceito, prática de exceção em uma sociedade machista etc.), acho que vale fazer como propõe Wisnik: em vez de abordar o entorno, falemos do jogo mesmo.

Quem sabe não caiba às mulheres trazer de volta a poesia do futebol sul-americano de que falava Pasolini?

Hoje em dia, se dá gosto ver jogadoras como Marta, Pretinha e Formiga em campo, melhor ainda é ver praias e recreios escolares repletos de meninas disputando a bola.

Longe do jogo de força e eficiência dos homens, quem sabe não caiba às mulheres trazer de volta aos gramados a poesia do futebol sul-americano de que falava Pasolini?

Em tempo: sei que não é o usual, mas neste caso é irresistível. Esta coluna vai para as meninas do Rebola Futebol Clube, jogadoras de futebol desde criancinhas como eu, e para a Mamá e Tatá, jogadoras do futuro.

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro