Neurônios e materialismo dialético

Minha geração, que hoje é sexagenária, viveu um período rico de embate de ideias na década de 1960, época em que pontificavam os princípios do materialismo dialético. Lembro bem desse embate, especialmente dos aspectos que se referiam à ciência.

Nesse campo, o suprassumo de nossas leituras filosóficas era A Dialética da Natureza, do filósofo alemão Friedrich Engels (1820-1895). Nesse livro, Engels expôs os seus três princípios fundamentais da natureza: a lei da unidade e do conflito de contrários, a lei da passagem do quantitativo ao qualitativo e a lei da negação da negação. Sobre a primeira lei, Engels entendia que na natureza as coisas geralmente são determinadas pela ação mútua de dois polos opostos, e que a existência desses polos lhes conferia uma unidade. Assim, cada objeto ou fenômeno natural seria o resultado unificado da interação de forças contrárias.

O problema era compreender isso aos 18 anos. Confesso que repetia, admirado, a concepção de Engels, escondendo minha dificuldade em aceitar de que modo um fenômeno podia ser ao mesmo tempo unificado e dividido. Os físicos tinham vários exemplos à mão, como o átomo, composto por prótons e elétrons, e os dois polos dos ímãs.

Mas, na incipiente neurociência da época, os exemplos eram escassos. Fiquei surpreso, agora, ao achar tardiamente um exemplo prático da primeira lei da dialética, quando me deparei com uma descoberta importante que acaba de ser publicada por um grupo de pesquisadores franceses. Eles mostraram como o cérebro é capaz de controlar continuamente a sensibilidade dos neurônios, regulando-a para os altos e baixos do fluxo de informações do dia a dia.

O neurônio e seus dois contrários
Neurônios são células excitáveis, o que, na prática, significa que produzem sinais elétricos que codificam informações provenientes de outros neurônios ou diretamente do ambiente. A excitabilidade do neurônio é possibilitada por uma membrana que o envolve, capaz de separar os íons de dentro daqueles que ficam fora da célula, criando uma diferença de potencial elétrico sobre a qual ocorrerão os sinais do código neural.

O cérebro precisa manter os neurônios “à flor da pele” enquanto estamos acordados, deixando-os prontos para disparar seus sinais de informação a qualquer momento e quaisquer que sejam as condições ambientais. Imagine a dificuldade. Você tem que ser capaz de entender o que um conferencista está dizendo, esteja o público em silêncio ou conversando. Tem que ser capaz de inserir a chave exatamente no buraco da fechadura no claro ou no escuro, e deve acertar o passo na direção certa, sozinho ou no meio de uma multidão.

 

Para isso, cada neurônio tem a sua excitabilidade regulada continuamente – entre o silêncio e a insensibilidade do sono e o alerta e a extrema vivacidade da vigília. O caso é que a excitabilidade de cada neurônio é regulada pela interação de dois contrários: excitação e inibição. E essas funções contrárias são providas por tipos opostos de sinapses (os pontos de contato e troca de informações entre neurônios): excitatórias e inibitórias.

A coisa funciona assim: nos circuitos cerebrais, cada neurônio recebe milhares de sinapses de outros neurônios. Algumas são excitatórias e outras, inibitórias. Enquanto as primeiras mantêm o neurônio “à flor da pele”, as segundas o tornam menos sensível, bloqueando a informação incidente. Quando é necessário aumentar a sensibilidade do neurônio, predomina a atividade excitatória, e o contrário ocorre quando é necessário “adormecer” o neurônio um pouco. Tudo isso no meio do bombardeio constante de informações (excitatórias) provenientes do meio ambiente que muda a cada momento: sons, movimentos do corpo, luzes, imagens e assim por diante.

Neuroplasticidade homeostática
A questão fundamental da biologia do neurônio, então, é saber como se dá a regulação dinâmica da sua excitabilidade, isto é, de que modo os circuitos conseguem manter a excitabilidade neuronal, aumentá-la ou diminuí-la conforme as circunstâncias. Em outras palavras: precisamos saber como o cérebro controla a sua própria excitabilidade, neurônio a neurônio, momento a momento.

Essa questão foi abordada por um grupo francês liderado por Philippe Fossier, do Instituto de Neurobiologia Alfred Fessard, em Gif-sur-Yvette (França). Os pesquisadores definiram a capacidade de regulação do nível de excitabilidade dos neurônios como neuroplasticidade homeostática, aproveitando dois conceitos importantes (e contrários!): plasticidade – a capacidade de mudança do cérebro em resposta à dinâmica do ambiente – e homeostase – a capacidade de estabilização funcional frente a essa mesma dinâmica ambiental.

A hipótese que propuseram é que os neurônios mantêm relativamente constante a sua sensibilidade ao ambiente – apesar das turbulências deste – por meio de um mecanismo de regulação do equilíbrio entre duas forças contrárias: a excitação e a inibição.

Os pesquisadores trabalharam com experimentos relativamente simples. Cultivaram fatias de córtex cerebral de ratos, mantidas vivas e funcionais em laboratório, e nelas combinaram a estimulação elétrica simultânea de um grupo de neurônios com o registro dos sinais elétricos produzidos em neurônios isolados do mesmo circuito.

Nessas condições, verificaram que o balanço entre excitação e inibição em cada neurônio cortical era constante: 20% de excitação, 80% de inibição. Ou seja: ao estimularem os neurônios com alta ou baixa frequências, o balanço permanecia o mesmo. Esse tipo de experimento tem a vantagem de tornar possível a adição de drogas ao frasco de cultura, e assim alterar controladamente a resposta do neurônio perante substâncias ativadoras ou bloqueadoras de cada etapa dos processos bioquímicos da excitação e da inibição. E o modo de ação dessas substâncias revela os mecanismos bioquímicos do processo.

Um gás no controle da contradição dialética do córtex

Os neurônios escuros são nitridérgicos, isto é, capazes de produzir óxido nítrico. Eles são os mantenedores do balanço dialético do córtex cerebral (foto: Marco Rocha Curado, que defendeu esta semana tese de mestrado sobre a morfologia dos neurônios nitridérgicos do rato na Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Os experimentos realizados pela equipe francesa encontraram o responsável pela neuroplasticidade homeostática: o gás óxido nítrico. Essa estranha substância (um gás no cérebro?) é sintetizada por proteínas existentes dentro do neurônio e em outras células e imediatamente se difunde através das membranas para ativar moléculas dentro de todas as células que encontre no caminho, sejam neurônios, células de vasos sanguíneos ou quaisquer outras.

O óxido nítrico é produzido por neurônios especiais distribuídos em mosaico em todo o córtex cerebral e demais regiões do cérebro. Esses neurônios possuem a enzima que sintetiza óxido nítrico e, segundo a equipe de Philippe Fossier, são os mantenedores do balanço excitação/inibição que garante a estabilidade da excitabilidade dos circuitos neuronais. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade: não é uma boa rima, mas é uma boa solução.

Desse modo, nosso cérebro está dialeticamente preparado para manter-se capaz de responder às informações provenientes do ambiente, ou as produzidas pelas suas próprias maquinações interiores, independentemente das oscilações de ruído, luminosidade ou movimento corporal.

Engels não podia supor que a sua primeira lei da dialética encontraria exemplos na neurociência. E muito menos os neurocientistas como eu poderiam supor que suas evidências poderiam ser associadas ao marxismo! Essa constatação não daria para consertar o mundo, mas é uma associação inusitada… 

SUGESTÕES PARA LEITURA
F. Engels (2000) A Dialética da Natureza. Editora Paz e Terra, 238 pp.
N. Le Roux e colaboradores (2006) Homeostatic control of the excitation-inhibition balance in cortical layer 5 pyramidal neurons. European Journal of Neuroscience, vol. 24: pp.3507-3518.
N. Le Roux e colaboradores (2009) Roles of nitric oxide in the homeostatic control of the excitation-inhibition balance in rat visual cortical networks. Neuroscience, vol. 163: pp.942-951.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
24/09/2009