No horizonte, as causas da miopia

As imagens mostram uma mesma cena vista por um indivíduo com visão normal, à esquerda, e por alguém que sofre de miopia, à direita (fotos: NIH National Eye Institute). 

Qualquer criança é capaz de observar que “quase todo mundo usa óculos”. De fato, as ametropias (distúrbios ópticos da formação da imagem nos olhos) estão entre os transtornos da saúde mais comuns da humanidade. Só a miopia aflige cerca de 50% das pessoas em todo o mundo! Por que será? Terá sido sempre assim, mesmo quando ainda não existiam os óculos para corrigir a visão desfocada? Quais as causas dessa tão freqüente e incômoda anomalia visual?

Teoricamente, o olho deve ser uma esfera perfeita para que os raios luminosos formem uma imagem em foco exatamente sobre a retina, que é o “filme” neuronal que fica no fundo, encarregado de traduzir a cena visual em impulsos nervosos que o cérebro possa compreender e interpretar. É o que mostra a figura abaixo.

Nos míopes, entretanto, o olho é mais comprido que o normal, e as estruturas transparentes que ficam na frente (a córnea e o cristalino) não conseguem concentrar os raios no plano de foco natural, ou seja, exatamente sobre a retina. Tudo acontece durante o desenvolvimento da criança, até a adolescência: o olho cresce cerca de três vezes em tamanho, em paralelo com o crescimento do corpo, mas nem sempre isso ocorre mantendo a esfericidade perfeita.

Os olhos normais, chamados emétropes (no centro), são perfeitamente esféricos, e com isso a imagem se forma em foco exatamente sobre a retina. Os olhos míopes (à direita) são mais compridos, e a imagem se forma em foco fora de lugar, antes da retina. Na hipermetropia (à esquerda) acontece o contrário: o plano de foco fica atrás da retina, e a imagem parece “fora de foco” quando os raios luminosos tocam o fundo do olho. Reproduzido de Cem bilhões de neurônios (R. Lent), Editora Atheneu. 

A visão influi sobre a forma do olho
Uma descoberta feita há trinta anos pelo neurocientista Torsten Wiesel, prêmio Nobel de medicina ou fisiologia em 1981, e seu colaborador Elio Raviola, trouxe uma dica inicial sobre as causas da miopia. Eles observaram que macacos recém-nascidos submetidos à fusão das pálpebras durante várias semanas apresentavam olhos mais compridos do que o normal. A fusão das pálpebras impede que o animal veja formas e cores e causa uma diminuição acentuada da luminosidade incidente sobre a retina, já que a luz tem que passar pelas pálpebras fechadas para chegar ao fundo do olho. Isso significa que, de algum modo, a interrupção da visão estruturada nesses animais interferiu sobre o crescimento do olho.

Raviola e seu grupo recentemente retomaram esse modelo experimental de miopia e chegaram a conclusões da maior importância. Trabalharam mais uma vez com macacos recém-nascidos, realizando fusões palpebrais de apenas um dos olhos, para compará-lo com o outro que permanecia sem qualquer manipulação experimental. A fusão palpebral durava dois a quatro meses. Depois disso, os animais tinham seus olhos medidos através de ultra-sonografia, revelando diferentes taxas de alongamento do olho privado de visão, que podia chegar a mais de 1 mm de diferença com o olho normal, equivalente a 4,5 graus de miopia.

Os pontos verdes indicam as células que proliferam na retina do olho normal e do olho míope. Como se pode ver, muito mais células proliferam no olho míope. O detalhe à esquerda mostra uma célula cujo núcleo (asterisco) foi marcado em verde no momento em que o DNA se duplicou, e cujo corpo foi marcado em vermelho para uma proteína que só existe nos cones, um dos tipos de fotorreceptor da retina. Modificado de Tkatchenko e cols. (2006) PNAS vol. 103: 4681-4686. 

O passo seguinte foi utilizar técnicas de biologia molecular para investigar se havia genes mais ativos ou menos ativos nos olhos míopes. Havia. 119 genes apresentavam alterações de expressão: 100 estavam mais ativos, 19 menos ativos. Qual seria a função desses genes com expressão alterada nos olhos míopes? Como cerca de 70% deles produziam proteínas envolvidas com a proliferação celular ou o metabolismo do material genético, os pesquisadores imaginaram a hipótese de que olhos maiores surgissem devido a uma maior taxa de proliferação celular.

Dito e feito, como comprova a figura ao lado. Marcadores de proliferação mostraram um grande aumento da neurogênese na retina dos olhos míopes, e revelaram que as células produzidas eram novos neurônios fotorreceptores.

Os óculos com os dias contados?
O que se pode concluir dos resultados do grupo de Raviola é que existe uma correlação entre a experiência visual durante a infância e o crescimento proporcional do olho. Olhos não estimulados adequadamente se tornam desproporcionais e, portanto, míopes. Mas o que seria “estimular adequadamente”? O experimento que os pesquisadores fizeram interfere com muitos aspectos da estimulação visual: pelo menos com a visão de cores, de formas, de objetos em movimento, e com a luminosidade global que incide sobre a retina. Qual deles é mais importante na determinação do correto crescimento ocular? E como se poderia quantificar a influência de cada um na causa da miopia?

De qualquer modo, a comprovação de que a própria visão regula o crescimento do tamanho do olho abre caminho para a prevenção da miopia (e das demais ametropias). Quando pudermos saber exatamente quais fatores da estimulação visual provocam olhos grandes (míopes) ou pequenos (hipermétropes), não será difícil dosar a exposição visual de nossas crianças para prevenir esses transtornos oculares. Só teremos que lutar contra a pressão da indústria de televisores e de monitores de computador, telefones celulares, videogames e a multidão de objetos de consumo “visual” que desenvolvem a cada dia para seduzir nossas crianças a comprá-los compulsivamente…

SUGESTÕES PARA LEITURA
T.N. Wiesel e E. Raviola (1977) Myopia and eye enlargement after neonatal lid fusion in monkeys. Nature , vol. 266, pp. 66-68.
A.V. Tkatchenko e colaboradores (2006) Form deprivation modulates retinal neurogenesis in primate experimental myopia. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA , vol. 103, pp. 4681-4686.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
30/03/2007