Normal é ser diferente

A síndrome de Down ocorre quando o indivíduo possui no núcleo de suas células três cópias do cromossomo 21 em vez de duas. É a condição cromossômica natural mais recorrente na espécie humana, com prevalência de 1 em cada 691 nascimentos. No Brasil, há pelo menos 300 mil pessoas com síndrome de Down.

Portadores dessa síndrome são acometidos com maior frequência por algumas patologias, tais como leucemia, cardiopatia congênita, hipotireoidismo, problemas respiratórios e de audição. Muitas dessas situações são tratáveis, de modo que a maioria dos portadores leva vidas saudáveis, entretanto, o maior desafio à socialização está na deficiência intelectual, incluindo dificuldades de aprendizagem.

Apesar dos benefícios do estímulo motor e cognitivo introduzido cedo na vida das crianças, até muito recentemente acreditava-se que os principais déficits intelectuais associados à trissomia do cromossomo 21 seriam intratáveis. No entanto, novos artigos científicos indicam a possibilidade de melhora significativa no processo de aprendizado e memória a partir da utilização de um fármaco já aprovado para o tratamento da doença de Alzheimer.

Trissomia do cromossomo 21
A presença de três cromossomos 21 é o sinal da síndrome de Down. (imagem: National Human Genome Research Institute)

Cabe fazer aqui uma pequena digressão. A doença de Alzheimer é a forma mais comum de demência, cujos primeiros sintomas são a perda de memória e da capacidade de atenção que culminam em déficit cognitivo.

Há concordâncias fenotípicas impressionantes entre pessoas com síndrome de Down e pacientes com Alzheimer, consequência do acúmulo cerebral de uma proteína – mais especificamente de oligômeros do peptídeo beta-amiloide – resultante do desequilíbrio na produção da proteína precursora de amiloide, cujo gene se localiza justamente no cromossomo 21.

Praticamente todas as pessoas com síndrome de Down irão apresentar ao longo da vida as perdas cognitivas características da doença de Alzheimer. A diferença é que os sintomas surgem mais precocemente nos indivíduos com Down.

Embora os medicamentos atuais não sejam capazes de impedir o avanço ou curar a doença de Alzheimer, podem ajudar a reduzir a perda de memória. A memantina é um desses medicamentos. Trata-se de um antagonista de um dos receptores de glutamato, o principal neurotransmissor do sistema nervoso.

Ensaios clínicos demonstraram que 28 semanas de tratamento com memantina são suficientes para reduzir a demência leve ou moderada e a inflamação cerebral em pacientes com Alzheimer.

Bloqueio certeiro

Uma linhagem de camundongos (chamados camundongos Ts65Dn) apresenta trissomia parcial do cromossomo 16 (equivalente ao cromossomo 21 em seres humanos) e diversas características dos portadores da síndrome de Down, inclusive deficiência intelectual.

Tratados com memantina por até seis meses, a partir do primeiro mês de vida, esses animais melhoraram a capacidade de reconhecimento espacial em relação aos não tratados. Tal observação foi acompanhada pelo aumento significativo na produção de uma proteína chamada BDNF, vital para o bom funcionamento dos neurônios. O tratamento com memantina também reduziu a quantidade de proteína beta-amiloide no cérebro dos camundongos.

Memantina
Pesquisador brasileiro avalia a utilização de memantina, aprovada para o tratamento de Alzheimer, por adultos com síndrome de Down. (esquema: Wikimedia Commons)

Dentre as alterações que produz no cérebro, os oligômeros de beta-amiloide ativam diretamente os receptores de glutamato, provocando a entrada excessiva de cálcio no interior dos neurônios e alterando sua função. A ativação exagerada desse receptor com aumento de cálcio intracelular pode ser uma das causas da demência associada tanto à doença de Alzheimer quanto à síndrome de Down.

Uma vantagem da memantina estaria em sua baixa afinidade pelo receptor de glutamato, ou seja, esse fármaco é capaz de bloquear a ação deletéria do glutamato sem comprometer por completo a atividade fisiológica de seu receptor.

A administração de memantina imediatamente antes da realização dos testes de memória foi suficiente para melhorar a performance dos camundongos Ts65Dn a níveis próximos aos animais controle – que não apresentavam a trissomia –, reforçando a hipótese de que o papel desse antagonista do receptor de glutamato seja reduzir o desequilíbrio neuroquímico dos portadores da síndrome de Down.

Em contrapartida, não houve melhora cognitiva nos animais sem trissomia após tratamento com memantina. Estudos sugerem, inclusive, que a memantina pode prejudicar a aprendizagem de indivíduos comuns. Cabe aqui mencionar que a administração crônica de memantina pode levar à degeneração de parte importante dos neurônios em ratos adultos saudáveis.

Impacto social

Desde 2006 comemora-se o Dia Mundial da Síndrome de Down. A data (21/3) é uma alusão às três cópias do cromossomo 21. Este ano participei da atividade organizada pela médica Márcia Ribeiro na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Veja vídeo produzido para o Dia Mundial da Síndrome de Down 2011, resultado de parceria entre 45 países

Em 2010, por conta de nossos estudos descrevendo a incidência de células com três cópias do cromossomo 21 no cérebro de pessoas comuns, fui convidado a ministrar uma palestra no evento organizado em São Paulo por Zan Mustachi, pediatra que atende crianças especiais há mais de 30 anos.

Na ocasião, conheci Alberto Costa, cientista brasileiro radicado nos Estados Unidos, responsável pelo primeiro teste clínico aprovado pela agência que regulamenta o uso de medicamentos nos Estados Unidos, a FDA, para avaliar a utilização de memantina por adultos com síndrome de Down.

O quociente de inteligência (QI) médio da população comum é 100, já o das pessoas com Down gira em torno de 50. A hipótese de Costa é que a utilização de memantina associada à boa educação, cuidados e estímulos apropriados poderá elevar o QI médio dos portadores da síndrome de Down para 70-80.

Se a hipótese de Costa estiver correta, mais pessoas com síndrome de Down serão  capazes de entrar na universidade e no mercado de trabalho

Alberto Costa transfere o conhecimento adquirido em modelos animais com o propósito de melhorar as habilidades intelectuais de indivíduos com síndrome de Down. Cabe aqui salientar, entretanto, que, como qualquer pesquisa em andamento, é necessário aguardar a divulgação dos resultados para que eventualmente se confirmem segurança e eficácia do medicamento em portadores da síndrome de Down.

Se a hipótese de Costa estiver correta, mais pessoas com síndrome de Down serão  capazes de entrar na universidade e no mercado de trabalho. Um belo exemplo de inclusão social como consequência direta da medicina translacional conduzida por um neurocientista brasileiro e que poderá transformar a vida de milhões de pessoas em todo o mundo.

Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

Leitura complementar

Lockrowa et al. Effects of long-term memantine on memory and neuropathology in Ts65Dn mice, a model for Down syndrome. Behavioral Brain Research, 2 abril 2010.

Rueda et al. Memantine normalizes several phenotypic features in the Ts65Dn mouse model of Down syndrome. Journal of Alzheimer’s Disease, v. 21, n.1, p. 277-290, 2010.