Novos cristãos, velhos conflitos

Causaram surpresa as declarações do reverendo Raniero Cantalamessa durante missa na última Sexta-feira Santa, em Roma, na Basílica de São Pedro. Diante do papa e de milhares de fiéis, o pregador oficial de Bento 16 comparou as acusações contra a Igreja Católica em casos de pedofilia ao antissemitismo e à “violência coletiva” sofrida pelos judeus.

Diante das várias reações de indignação, só restou a Cantalamessa pedir desculpas, afirmando que sua intenção havia sido enviar uma saudação aos judeus por “uma data que, infelizmente, sempre foi de confronto e, para eles, de compreensível sofrimento”.

Até 1961, os cristãos rezavam para que fosse dissipada “a cegueira deste povo”

A intenção pode até ter sido boa, mas o resultado foi desastroso. O reverendo referia-se às preces que os católicos fazem pelos judeus nas Sextas-feiras Santas. Antes do Concílio Vaticano II, convocado em 1961, os cristãos rezavam para que fosse dissipada “a cegueira deste povo, para que, reconhecida a verdade de sua luz, que é o Cristo, saíssem das trevas”. Até que o Concílio recomendou, em 1965, que cristãos e judeus tivessem “mútuo conhecimento e apreço”, e a frase foi mudada.

Como sempre acontece quando há situações semelhantes, a polêmica e as reações apaixonadas de ambas as partes fazem lembrar as tensões que marcaram as relações entre os judeus e a Igreja Católica historicamente. No caso do Brasil, elas remontam ao período colonial, quando a Igreja, através do tribunal do Santo Ofício, perseguia cristãos-novos acusados de criptojudaísmo, ou seja, de praticar o judaísmo em segredo.   

 

Passado de fugas e batismos forçados

Édito de expulsão dos judeus da Espanha, em 1492
Édito de expulsão dos judeus da Espanha, assinado em Granada em 1492 (Imagem: Arquivos Municipais, Ávila, Espanha).

Embora tenham existido episódios anteriores de conversão forçada, foi no fim do século 15 que a questão ganhou contornos mais fortes. Em 1492, os judeus da Espanha foram obrigados a se converter. Aqueles que não quisessem fazê-lo deveriam sair do país. Muitos cruzaram a fronteira em direção a Portugal, para passar pela mesma situação poucos anos depois: em 1497, o rei Dom Manuel impôs o batismo obrigatório para todos os judeus e restringiu sua saída do Reino. Nem fugir era possível.

Quando, anos depois, a saída dos cristãos-novos foi permitida, muitos buscaram o caminho do Atlântico, dirigindo-se para a colônia brasileira, onde supunham que teriam uma vida melhor.

E, de fato, tiveram. Embora os braços da Inquisição tenham alcançado os portugueses que viviam por estas paragens, o alcance era muito menor do que no Reino, onde havia três tribunais, ou do que na banda oriental do Império Português, onde foi instalado o tribunal de Goa – responsável pela jurisdição das possessões portuguesas na Índia e na África oriental.

Mesmo assim, os registros destes tribunais testemunham a verdadeira obsessão que os inquisidores tinham com o criptojudaísmo: dos cerca de 40 mil autos dos tribunais inquisitoriais (que não incluem os de Goa, cuja documentação se perdeu), de 70% a 80% dos réus respondiam a acusações de judaizar em segredo. 

Muita gente foi denunciada apenas por picuinha de seus vizinhos

Há muito tempo que a Inquisição portuguesa atrai a atenção de um sem-número de historiadores – que fazem uso de seus processos para analisar tanto a vida cotidiana de cristãos-velhos e cristãos-novos no período colonial, quanto para estudar as motivações dos inquisidores e as práticas religiosas dos acusados.

Os estudiosos dividem-se basicamente entre duas abordagens: aqueles que consideram que a Inquisição de fato perseguia judaizantes, e que estes cristãos-novos realmente mantinham práticas do judaísmo em segredo; e aqueles que consideram estas acusações falsas: para estes, as alegações eram apenas uma desculpa para discriminar ou, pior, para confiscar os bens dos cristãos-novos.

Padre Antônio Vieira, missionário jesuíta
Padre Antônio Vieira defendia fim da distinção entre cristãos novos e velhos no Brasil do séc. XVII (Imagem: Biblioteca Nacional, Lisboa).

Seja como for – e provavelmente sendo reais as duas situações –, todos concordam que o apoio do Estado à ação da Igreja produziu situações limítrofes, e que muita gente foi denunciada apenas por picuinha de seus vizinhos, tendo confessado crimes dos quais nunca ouviu falar por medo da condenação.

Daí vem a famosa máxima do padre Antônio Vieira, talvez o mais famoso crítico dos métodos da Inquisição, que costumava dizer que a Inquisição fabricava judeus. Mesmo que, na vida real, cristãos-novos convivessem com cristãos-velhos, ocupassem cargos públicos (o que não era permitido pela legislação) e fossem até padres, havia sempre o fantasma da denúncia, que produziu uma sociedade marcada pelo medo, pela desconfiança, pela intolerância.

 

Inquisição versus tolerância

Por conta disso, é surpreendente o lançamento do livro Cada um na sua lei: tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico (Companhia das Letras/Edusc), de Stuart Schwartz. Com o rigor analítico que caracteriza sua vasta produção acadêmica, o historiador norte-americano lê os mesmos autos já estudados por outros historiadores com outros olhos, invertendo a proposição básica dos estudos sobre a Inquisição: sem negar a caracterização geral da sociedade colonial, ele analisa não a ação inquisitorial, mas os atos tolerantes e éticos de seus condenados.

Em vez de enfocar apenas a denúncia, ele olha para a solidariedade entre cristãos-velhos e cristãos-novos, para as concepções dissidentes de salvação e, principalmente, para as histórias de tolerância e pluralismo religioso entrevistas em cada documento.

Schwartz descortina sociedade muito mais tolerante a concepções religiosas do que antes se poderia prever

Schwartz descortina uma sociedade muito mais tolerante para com concepções religiosas do que antes se poderia prever. Com isso, mostra que diferentes ideias sobre a salvação – conceito central ao cristianismo, mas também ao islamismo e ao judaísmo – podiam conviver, “cada um na sua lei”, como professava o antigo provérbio espanhol que dá título ao livro.

Tão interessante quanto a análise que o autor faz dos documentos produzidos pela Inquisição é pensar sobre os significados do tolerantismo religioso nos dias de hoje, como Schwartz faz ao fim de seu livro. Defendendo a dúvida e o ceticismo como conceitos fundamentais da modernidade, ele demonstra como a liberdade de consciência tão central ao mundo contemporâneo já estava presente, embora de maneira minoritária, não apenas entre pensadores e filósofos, mas também nas mentes de pessoas comuns que viveram entre os séculos 16 e 18.


Keila Grinberg

Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro