Novos Frankensteins?

Há quase trinta anos, em 5 de julho de 1978, grande parte da humanidade foi tomada de surpresa pelo nascimento da pequena britânica Louise Brown. O motivo da comoção foi que a criança não havia sido concebida pelos meios tradicionais e, sim, gerada por fertilização in vitro.

O nascimento desse primeiro bebê de proveta – como foi chamado pela imprensa – suscitou um imenso debate sobre ética na ciência. Para alguns, essa técnica desenvolvida pelos médicos Patrick Steptoe e Robert Edwards, do hospital Kershaw Cottage de Lancashire e da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, podia ser considerada o “milagre do século”. Para outros, porém, era um sacrilégio que atentava contra os limites impostos ao ser humano.

Cartaz para uma adaptação cinematográfica de 1910 do livro Frankenstein, de Mary Shelley. A obra coloca em questão os limites da manipulação da vida pela ciência (imagens: Wikimedia Commons).

Hoje, Louise leva uma vida normal e é mãe de uma criança (concebida da forma convencional!). Quanto à fertilização in vitro ou reprodução assistida, como a técnica é agora conhecida, é algo comum e que não causa qualquer surpresa.

Outra novidade dos tempos modernos é se considerar normal um indivíduo ter batendo dentro de si um coração doado por alguém já falecido. Contudo, há ainda um grande debate sobre o uso de células-tronco para fins terapêuticos. Indivíduos contrários a essa técnica de clonagem lembram a possibilidade de termos um mundo futuro povoado de bebês gerados apenas em laboratório, como aqueles criados por Aldous Huxley em seu livro Admirável mundo novo. Outros temem que o método abra as portas no futuro para a criação de monstros como aquele produzido a partir de pedaços de cadáveres por Victor Frankenstein, o cientista maluco criado pela escritora britânica Mary Shelley (1797-1851).

Essas obras literárias e suas inúmeras adaptações para o teatro e cinema tecem uma visão nada lisonjeira da manipulação da vida pelos cientistas. Elas se baseiam em nosso tormento de que algo venha a ferir dois dos mais importantes atributos de um ser humano: sua individualidade e sua identidade.

Falta de conhecimento
A oposição à clonagem terapêutica se deve em grande parte à falta de conhecimento do público sobre o que sejam clones e embriões. Os primeiros são, para muitos, temerários personagens da ficção cientifica, em alguns casos vindos de alguma galáxia distante com intenções escusas contra a humanidade. Já os embriões são vistos às vezes como pequeninos seres humanos totalmente formados que habitam as barrigas de suas mães.

Essa imagem negativa reflete mais um descompasso entre o que fazem os cientistas e a percepção pública do trabalho desses profissionais e está bastante distante da realidade dos laboratórios de pesquisa de clonagem terapêutica.

Embrião humano com oito células, no terceiro dia após a fecundação, usado em clínicas de fertilização in vitro.

Nesses locais se estudam pequenos grupos de células – os embriões – nos estágios iniciais de seu desenvolvimento, que ocorre integralmente longe do útero materno, em uma placa de cultura de tecidos. Nos laboratórios de clonagem terapêutica também se estudam pequenas amostras de células – os clones – retiradas de algum indivíduo ou de um tecido especifico. Nada, portanto de muito glamoroso ou espetacular…

O que a ciência tem tentado nos últimos anos é compreender quais mecanismos controlam a programação nuclear de um grupo de células, tornando-as capazes de desempenhar funções específicas no organismo de um indivíduo. Essa especialização progressiva ocorre simultaneamente com o desenvolvimento embrionário e o marco inicial desse processo se dá no 14º dia após a gestação, com o desenvolvimento dos primeiros neurônios.

Para que essa diferenciação ocorra, uma série de genes são ativados enquanto outros são silenciados. É nesse processo de ativação e inativação que reside um dos problemas que precisam ser superados pela clonagem terapêutica, pois, para a imensa maioria das células do nosso corpo, essa especialização é um caminho sem volta. Dessa forma, nossas células são incapazes de retornar a um estado mais primitivo e indiferenciado ou ainda de se diferenciarem em tipos celulares distintos.

Quando compreendermos os mecanismos que controlam esse processo de programação nuclear, poderemos direcionar células indiferenciadas (totipotentes ou células-tronco) para que elas possam evitar os efeitos nocivos de doenças degenerativas (como Alzheimer ou Parkinson) e auto-imunes (como o lúpus, diabetes melito, artrite reumatóide etc.). Além disso, a reprogramação permitiria modificar as funções de células de células sadias e cultivá-las para que possam substituir órgãos e tecidos doentes ou senis de um indivíduo (transplante autólogo), eliminando os efeitos da rejeição imune a transplantes.

Ensinando células
Uma das alternativas atuais para superar a incapacidade de nossas células de retroceder a um padrão mais primitivo e indiferenciado é introduzir núcleos celulares adultos diferenciados em um gameta feminino ou óvulo anucleado que deve, após estimulo adequado, se multiplicar, dando origem às células presentes em uma etapa inicial do desenvolvimento embrionário conhecida como blastocisto. Essas células são, então, multiplicadas e tratadas com fatores que estimulam sua diferenciação no tipo celular de interesse.

Esse óvulo funcionaria, portanto, como um receptáculo para o núcleo e para o patrimônio genético de uma célula adulta e forneceria elementos de seu citoplasma capazes de redirecionar o desenvolvimento desse tipo celular. Dessa forma, esses núcleos celulares adultos seriam inicialmente “ensinados a rejuvenescer” e, posteriormente, a ser capazes de recriar outros tipos de tecido do organismo.

Células-tronco embrionárias humanas em cultura sobre uma camada de fibroblastos embrionários em camundongo.

Em uma etapa posterior, essas células podem ser transplantadas em modelos animais para se verificar sua eficiência na substituição de tecidos doentes ou senis. O processo de diferenciação, portanto, garante que as células-tronco embrionárias originem exatamente o tipo celular desejado e que não se convertam, por exemplo, em um tumor.

Essa metodologia, conhecida como transferência nuclear somática, foi utilizada em 1996 pela equipe liderada pelos embriologistas Ian Wilmut e Keith Campbell, do Instituto Roslin, na Escócia, para a clonagem da famosa ovelha Dolly. Porém, o objetivo desses cientistas era outro: originar indivíduos adultos e não órgãos e tecidos como ocorre na clonagem terapêutica.

Além disso, o método empregado pela equipe de Wilmut e Campbell, conhecido como clonagem reprodutiva, possui uma eficiência baixíssima e gera um número enorme de embriões defeituosos – a maioria dos quais sequer chega a nascer. Por isso, esse processo, no caso de humanos, está totalmente proibido na imensa maioria dos países do mundo.

Alternativas de clonagem terapêutica
Outra possibilidade que até o momento tem gerado resultados mais compensadores é o uso de células humanas nos primeiros estágios do embrião e, portanto, ainda indiferenciadas, como fonte de células-tronco embrionárias. Essas células, que existem abandonadas às milhares nas clínicas de fertilização, poderiam, por exemplo, ser utilizadas para a transferência nuclear somática ou ainda passar por um processo de reprogramação.

Uma terceira alternativa para a clonagem terapêutica é tentar reprogramar e multiplicar as raríssimas células indiferenciadas ainda existentes em um indivíduo adulto. Esses tipos celulares, conhecidos como células-tronco adultas, estão presentes, por exemplo, no cordão umbilical de um recém-nascido, na polpa dos dentes-de-leite ou em uma área específica do folículo piloso conhecida como região da saliência. Porém, as pesquisas com essas células-tronco adultas têm gerado resultados menos efetivos. Isso se deve ao fato de que esses tipos celulares já possuem um grau de diferenciação superior ao encontrado nas células-tronco embrionárias.

No futuro, contudo, após compreendermos a biologia de todos os fatores envolvidos nesse processo, poderemos quem sabe reverter o processo de diferenciação e ser capazes de dispensar o uso das células-tronco embrionárias e passar a utilizar apenas células-tronco adultas ou mesmo células já diferenciadas.

Se você ainda não tem um filho ou filha, provavelmente não pode avaliar a alegria de conceber uma criança que carrega em si parte de suas características genéticas e talvez não conheça a desesperança que acomete os casais que lutam anos a fio contra a infertilidade. Para eles, o desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida tem sido uma bênção e um dos maiores avanços da ciência. De maneira similar, o progresso das técnicas de clonagem terapêutica poderá no futuro salvar muitas vidas que nos são queridas e mesmo fazer com que muitos indivíduos tenham uma melhor qualidade de vida.

Porém, não devemos criar falsas esperanças para as pessoas que têm mal de Parkinson, paraplegia, cirrose e outras doenças. Assim, como o uso rotineiro das técnicas de reprodução assistida tardou mais de 25 anos, o desenvolvimento da clonagem terapêutica somente agora está começando e provavelmente gerará frutos apenas para nossos filhos e netos.

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
02/11/2007

SUGESTÕES PARA LEITURA
Hall, V.J. e Stojkovic, M. (2006). The status of human nuclear transfer. Stem Cell Rev. 2, 301-308.
Yang, X. et al. (2007). Nuclear reprogramming of cloned embryos and its implications for therapeutic cloning. Nat. Genet. 39, 295-302.
Chan,S. and Harris,J. (2006). The ethics of gene therapy. Curr. Opin. Mol. Ther. 8, 377-383.
Hall, V.J., Stojkovic, P. e Stojkovic, M. (2006). Using therapeutic cloning to fight human disease: a conundrum or reality? Stem Cells 24, 1628-1637.
Pavelic, K. (2004). Arguments for human therapeutic cloning. Bosn. J. Basic Med. Sci. 4, 15-18. Lisker,R. (2003). Ethical and legal issues in therapeutic cloning and the study of stem cells. Arch. Med. Res. 34, 607-611.