O acesso ao conhecimento em questão

Atire a primeira pedra quem nunca brincou de surfar ao léu no Google. Ainda mais você, que está lendo uma coluna publicada numa revista on-line. Para gente como nós, só podia ser motivo de comemoração o anúncio em 2004 de que o Google se associaria a cinco importantes bibliotecas em um gigantesco projeto de digitalização de livros (as instituições envolvidas eram a New York Public Library e as bibliotecas das universidades de Michigan, Stanford e Harvard (EUA) e Oxford (Reino Unido).

Não se tratava da primeira biblioteca digital, evidentemente, nem da primeira ferramenta on-line de busca de livros. Desde sua criação, a web vem motivando bibliotecários e cientistas da informação do mundo inteiro a repensar a forma como as bibliotecas preservam e disponibilizam informação, revistas especializadas, livros. 

 
O que o Google propunha, no entanto, não era nada disso. Ou melhor, era muito mais que isso. Em suas próprias palavras, a empresa almejava ”organizar a informação do mundo e torná-la universalmente acessível e útil”. Nada mais, nada menos. A ideia era simplesmente digitalizar todos os livros do mundo. Hoje, com a parceria de outras bibliotecas de universidades europeias e norte-americanas e com cerca de 7 milhões de livros digitalizados, dos quais um milhão em domínio público, o Google se orgulha de permitir que pessoas encontrem livros esgotados, que jamais (jamais?) seriam lidos sem sua ajuda. 
Seria a realização do sonho da biblioteca de Alexandria, com a criação de uma biblioteca universal, digital, de livre acesso a qualquer um que tivesse um computador conectado à web? Veríamos, finalmente, a tecnologia a serviço da difusão do conhecimento? Acalmai-vos, otimistas de plantão. Ao que parece, ainda estamos longe de chegar lá.

Pelo menos é o que argumenta o historiador Robert Darnton, professor da Universidade Harvard, no artigo ‘Google and the Future of Books’, publicado este mês na New York Review of Books.

Acesso irrestrito
Especialista no estudo do século 18, principalmente das ideias iluministas, Darnton recorda o lema “Free to All” [Livre para todos], cravado na entrada da Boston Public Library. Quem discordaria dessas palavras? Difundir o conhecimento, permitir o acesso público aos livros e preservá-los como patrimônio cultural da humanidade é, afinal, o objetivo de toda biblioteca pública. A questão é: caberia ao Google, uma empresa privada, a levar adiante esta empreitada?

Em certo sentido, de acordo com as idéias de Darnton, sim. Afinal, a empresa se propõe a disponibilizar de graça para download todas as obras de domínio público – cerca de um milhão dentre os sete milhões digitalizados – que possuir.

Em outros termos, no entanto, não. O Google foi processado por autores e editoras por conta da disponibilização on-line de obras esgotadas, mas ainda protegidas por direitos autorais – que correspondem a cinco dos sete milhões de livros digitalizados até agora. Em decorrência disso, a empresa decidiu vender a bibliotecas e universidades assinaturas para acesso ao conteúdo que vem sendo digitalizado, assim como já fazem há anos as empresas que vendem assinaturas de revistas eletrônicas. Ressalva: respeitado o acordo, o Google disponibilizará um computador por biblioteca pública para acesso gratuito (sem impressão) de obras esgotadas.

É aí que começam os problemas. É sabido que as bibliotecas gastam, hoje, muito mais com bases eletrônicas do que com livros. Como fariam, por exemplo, as brasileiras para manter a assinatura do pacote Google, pressupondo-se que ele terá preço semelhante ao das demais bases de dados?

A questão é complicada para as bibliotecas brasileiras, como notou Tania de Luca, professora do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Assis. Uma coisa é a biblioteca digitalizar o seu acervo e colocá-lo on-line; outra coisa é uma empresa digitalizar e vender o acesso. Daí a importância dos repositórios institucionais, do movimento do livre acesso e da obrigação de que tudo o que for produzido com dinheiro público seja disponibilizado livremente.

Valorizar a biblioteca

Tela inicial da versão experimental da Biblioteca Digital Europeana, que oferece acesso a mais de 2 milhões de documentos digitalizados. Ao informar a origem de cada documento acessado (diferentemente da busca do Google), essa iniciativa contribui para valorizar as bibliotecas que se uniram nesse projeto.

Tania de Luca coloca a própria biblioteca no centro do processo de digitalização e disponibilização de seu conteúdo – o que o Google não faz, um vez que o resultado das buscas aparece sem referências à instituição que guarda o livro.

Com isso, ela ressalta o mesmo ponto defendido por Pedro Puntoni, diretor da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (que vem sendo digitalizada) e professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP), em artigo publicado em novembro de 2008 na Revista da USP.

Para ele, é preciso valorizar também a própria biblioteca, não apenas pelo que já foi gasto na constituição de seu acervo, mas também por aquilo que ela – e o livro – representam como meios fundamentais do acesso à cultura.

Nesse sentido, para Puntoni, uma alternativa de peso à proposta do Google seria o projeto Gallica, desenvolvido pioneiramente pela Biblioteca Nacional da França, que deu origem à Biblioteca Digital Europeana, acessível ainda em fase experimental desde o fim de 2008. Essa iniciativa pública respeita a origem da informação e do acervo ao qual ela pertence e contribui sobremaneira para manter as bibliotecas como instâncias fundamentais de preservação da história e do patrimônio cultural da humanidade, respeitando a diversidade das diferentes instituições.

Mas seria leviano demonizarmos o Google apenas por se tratar de uma empresa privada que, como todas, visa ao lucro. Mais do que isso, trata-se também de uma disputa em torno de direitos autorais, que vem dando golpes mortais na indústria do entretenimento, na qual o livro vem sendo, até agora, talvez a menos afetada das mídias.

Isto é, até a chegada da ferramenta de busca em livros dessa empresa, o Google Book Search. Esta talvez seja uma ameaça mais poderosa ao livro do que as maquininhas de leitura digital como o Kindle, da Amazon, ainda não incorporadas pelo mesmo grande público que consome iPods e outros tocadores de música digital. Com o Google, autores e editoras não veem por que a empresa deva ganhar dividendos por obras que não deixam de pertencem a eles pelo fato de estarem esgotadas. Daí o processo, daí o acordo, daí a decisão de cobrar pelo acesso a essas obras, cujo retorno reverteria para editoras, autores e para o próprio Google.

Alcance dos direitos autorais

O Kindle, aparelho para leitura de livros digitais produzido pela Amazon, foi apontado por alguns como uma ameaça aos livros impressos (foto: Ted Merriman).

O debate é quentíssimo e muito extenso para ser desenvolvido aqui. Basicamente, o que se discute é por quanto tempo o criador tem direito de receber por sua criação – e também o difusor (no caso, a editora). Discute-se ainda, no mundo de hoje, o próprio conceito de autoria – mas isso nos levaria mais longe ainda.

Por ora, voltando ao mundo da veiculação das ideias acadêmicas, é o caso de refletirmos sobre a pertinência da atribuição de direitos autorais em obras financiadas com dinheiro público, que é justamente o caso do Brasil. Novamente de acordo com Tania de Luca, vejamos o exemplo dos artigos acadêmicos: em geral, autores desses trabalhos nada recebem para publicá-los em revistas científicas; a revista, por sua vez, vende seu conteúdo para uma base de dados eletrônica, que a vende para as bibliotecas que, por sua vez, precisam comprá-las, uma vez que as próprias revistas em papel estão com os dias contados.

É um grande negócio: pesquisas financiadas com dinheiro público têm seus resultados vendidos por grandes grupos econômicos. Ganham todos, inclusive o autor, que acumula pontos na carreira, traduzidos em melhores empregos, bolsas e financiamentos, decorrentes do prestígio de publicar em uma boa revista científica.

Ganham todos? Claro que não. Perde o leitor, que só lerá o texto se tiver acesso à base de dados à qual ele pertence. Voltando a Robert Darnton: enquanto a questão do acesso à informação e ao conhecimento for pautada por batalhas jurídicas entre grupos que representam interesses privados, quem perde mesmo é o público. Em todos os sentidos que a palavra possa ter.

Em tempo: neste âmbito, ponto para o governo federal, que vem investindo muitos recursos na construção, em software livre, do Portal Domínio Público e na compra das bases de dados que compõem o Portal de Periódicos da Capes, acessível a 191 instituições de ensino superior em todo o país. 

 

Para quem quiser se aprofundar sobre a discussão, além do artigo de Robert Darnton, recomendo vivamente a leitura dos seguintes textos:

Pedro Puntoni, As Bibliotecas Digitais e a sociedade da informação: perspectivas para as bibliotecas digitais no Brasil. Revista da USP, novembro de 2008.

Jean-Noel Jeanneney, Google and the myth of universal knowledge. Chicago and London, The University of Chicago Press, 2007. 


Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
13/02/2009