O avesso do avesso do avesso do avesso

Você perdeu o seu camelo, meu amigo
E as pessoas ao seu redor estão cheias de conselhos

Você não sabe onde o camelo se encontra,
Mas você sabe que essas indicações casuais estão erradas.

Este é um poema que li recentemente do eminente filósofo e poeta místico do Islã Jalāl al-Dīn Muhammad Balkhī (1207-1273), conhecido no mundo ocidental como Jalal al-Din Rumi ou simplesmente Rumi.

É interessante que esse místico sufi do século 13 que nasceu no Afeganistão e passou a vida na Turquia, ainda seja um dos poetas mais importantes da nossa era. Em honra a seu 800º aniversário, a Unesco declarou 2007 como o “Ano Internacional de Rumi”.

Ele ainda é muito lido atualmente. The Essential Rumi, antologia publicada em 1997 com uma seleção de seus poemas traduzidos por nomes como o escritor americano Coleman Barks (1937-), já vendeu mais de meio milhão de exemplares.

O Masnavi de Rumi é uma das mais importantes coletâneas de poesia mística de todos os tempos

O que faz com que a obra e o pensamento de Rumi continuem tão universalmente relevantes? Bem, ele se dirigiu à humanidade como um todo, defendendo a tolerância. Assim, transcendeu as fronteiras culturais, territoriais e mesmo temporais. Isso explica seu apelo universal, tanto em sua época quanto no mundo moderno, mais de 800 anos depois.

A obra-prima de Rumi – o Masnavi, também chamado de “Alcorão persa” – é uma das mais importantes coletâneas de poesia mística de todos os tempos. Outro livro digno de nota é o Diwan-e Shams-e Tabrizi.

Jalal al-Din Rumi
Detalhe de selo do Afeganistão com a efígie de Rumi, nascido no território daquele país há mais de 800 anos (reprodução).

Rumi acreditava muito no poder espiritual da música e dizem que ele foi o introdutor do característico ‘giro’, meditação em movimento praticada pelos dervixes. Pela concentração na dança e música espiritual, Rumi era capaz de atingir o êxtase e experimentar a alegria da comunhão com o divino.

 

Mas Rumi também tinha um lado mais mundano e gostava de histórias humorísticas, incorporando a sua poesia fábulas e “causos” corriqueiros.

É de Rumi uma estrofe que há muitos anos tem me servido de inspiração:

Não te satisfaças com poemas,
e histórias de como as coisas
se passaram com os outros.
Desenvolva seu próprio mito.

Cisnes brancos e pretos

O poema de Rumi que abriu esta coluna despertou em mim elucubrações intelectuais com respeito a um aspecto fundamental da ciência: a assimetria lógica entre evidência positiva e evidência negativa, entre verificação e falsificação, entre confirmação e refutação, entre o direito e o avesso.

Para exemplificar, elaboremos uma hipótese – “Todos os cisnes são brancos” – e tratemos de testá-la de modo científico pela observação empírica. Teremos de fazer uma busca sistemática do número máximo de cisnes que conseguirmos identificar em várias regiões geográficas e verificar se realmente cada um deles é branco.

Após examinar milhares e milhares de cisnes e constatar que todos são brancos, estará provada a hipótese? Cientificamente não, pois vai sempre existir a possibilidade, ainda que improvável, de que o próximo cisne seja negro.

Tratemos de testar a hipótese “Todos os cisnes são brancos” por observação empírica

Entretanto, de maneira geral, a maioria do público leigo consultada considerará que a hipótese está provada após o exame de um grande número de cisnes brancos.

Realmente, psicólogos já descreveram uma tendência humana chamada de “viés de confirmação”, ou seja, a tendência a valorizar observações positivas, ao invés de negativas.

A observação da percepção de correlações indica que as pessoas são excessivamente impressionadas pela ocorrência concomitante de dois eventos e insuficientemente influenciadas por situações em que um evento ocorre sem o outro.

Por séculos, na Europa achava-se que a afirmação “todos cisnes são brancos” era a pura expressão da verdade mais absoluta. Entretanto, para surpresa geral, cisnes negros foram descobertos em 1697 por exploradores holandeses no novo continente da Austrália. Esse achado imediatamente falsificou a hipótese sobre a cor dos cisnes. Imaginem a reação dos europeus com a chegada dos primeiros cisnes negros da Austrália!

Cisnes negros
Basta a observação de um único cisne negro para falsificar a hipótese de que todos os cisnes são brancos (foto: Wikimedia Commons – CC BY-SA 3.0).

Isso nos lembra a parábola dos perus, que relatamos na coluna de dezembro. Os perus acham que o fazendeiro é um amigo, um benfeitor, por alimentá-los todo dia, até que chega o Natal e a degola começa. Naquele texto mencionamos como o filósofo escocês David Hume (1711-1776) demonstrou que raciocínios indutivos como esse, alegoricamente atribuído aos perus, não podem ser logicamente justificados.

Tudo isso levou o influente  austríaco Karl Popper (1902-1994) a propor que o critério pelo qual uma hipótese deve ser testada é por meio de sua refutação, como ocorreu na descoberta dos cisnes negros. De fato, Popper propôs que o critério para julgar se uma hipótese é científica é sua falsificabilidade. Assim, por exemplo, a hipótese “todos os homens são mortais” não pode ser considerada científica, pois nunca poderá ser desmentida.

Popper afirma que mesmo as declarações “infalsificáveis” – não científicas – têm certa importância na sociedade. Proposições metafísicas ou religiosas têm um significado cultural ou espiritual. A ideia da existência de átomos, antiga, metafísica e não falsificável, acabou levando a teorias modernas que se revelaram refutáveis. Popper classifica as teorias falsificáveis que resistem a testes científicos sérios como “corroboradas pela experiência do passado” – mas isso não é equivalente a confirmação e não permite a conclusão de que a teoria é total ou parcialmente verdadeira.

Em termos formais, a expressão “todo A é B” é logicamente equivalente a “todos os não-B são não-A”. Consequentemente, a afirmação “Todos os cisnes são brancos” é logicamente equivalente à afirmação: “Todas as coisas não brancas são não cisnes”, ou seja, algo que não é branco não pode ser um cisne. Assim, cada vez que encontramos uma coisa não branca e constatamos que não é um cisne, ela serve como evidência indutiva de que “Todas as coisas não brancas são não cisnes”.  Por exemplo, encontrar um tijolo vermelho é evidência de que as coisas que não são brancas realmente não são cisnes e, logicamente, serve como suporte à ideia de que “todos os cisnes são brancos”!

Com seu ceticismo e sua lógica impecável, Hume se tornou um grande criador de problemas

Parece haver algo errado com essa lógica, mas não há. Por outro lado, ficar procurando coisas não brancas na esperança de que uma venha a ser um cisne (o que falsificaria a hipótese) é uma estratégia muito improdutiva, porque no mundo há muito mais coisas que são não brancas para averiguarmos se são ou não cisnes do que cisnes para verificarmos se são brancos.

O que é e o que não é

Com seu ceticismo constante e sua lógica impecável e irrefutável, David Hume acabou se tornando um grande criador de problemas – um “chato”. Após destruir impiedosamente os alicerces lógicos da indução, ele dirigiu a potência de seu intelecto para a análise dos “fatos” e dos “valores”.

Segundo ele, não se deve confundir o domínio das convicções éticas (o que deve ser) com o das proposições científicas (o que é). Não se pode passar da descrição à prescrição, ou seja, formalmente a ciência não é competente para fundamentar os valores éticos da sociedade. Essa regra lógica é tão severa que recebeu o apelido de “guilhotina de Hume”.

Guilhotina
Em se sabendo como o mundo é, como se pode conhecer a maneira como o mundo deveria ser? Essa simples questão é um dos problemas centrais da ética. O filósofo escocês David Hume chegou à conclusão de que tal passagem do “é” para o “deve” não é possível. Essa regra lógica é tão severa e definitiva, que recebeu o apelido de “guilhotina de Hume”. Na foto, vemos uma guilhotina exposta no Museu da Inquisição em Cartagena, Colômbia (foto: Bernardo Esteves).

Vejamos como o raciocínio de Hume se aplica a um exemplo do meu interesse – o fato de que cientificamente não existem raças humanas, já apresentado muitas vezes em minhas colunas. De acordo com o filósofo escocês, esse fato não pode servir para fundamentar logicamente o imperativo moral de eliminar o conceito de raças (que existem como construções culturais e não como fatos científicos) do seio da sociedade,ou seja, o sonho de uma sociedade desracializada.

A ciência desempenha um papel libertador no exercício das escolhas morais

Entretanto, em um artigo meu e de Telma Birchal, professora do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), argumentamos que o fato da inexistência de raças pode ser visto de maneira vantajosa usando a sua “negativa”, pois a ciência é muito poderosa na demonstração do “que não é”. A ciência traz, portanto, elementos para esclarecer e informar as decisões éticas ao afastar erros e preconceitos, desempenhando dessa maneira um papel libertador no exercício das escolhas morais.

Assim, uma negativa – a comprovação científica da não existência biológica de raças humanas – pode catalisar a desconstrução das raças como criações do nosso imaginário cultural. Aos poucos, a demonstração de que raças “não são” será absorvida pela sociedade e incorporada às suas convicções e atitudes morais.

Uma nova postura coerente e desejável irá emergir: a valorização da singularidade de cada cidadão. Em sua individualidade, cada um tem o direito de construir suas identidades de maneira multidimensional, em vez de ser definido de forma única como membro de um grupo racial ou “de cor”.

Sergio Danilo Pena
Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais