O cego

– Quem é? – perguntou.

– Sou eu – respondeu, desde o lado de fora da porta, uma voz que reconheceu como sendo a do seu irmão. Abriu.

Não era. Era um homem, que entrou dando um empurrão e lhe colocou a ponta de um revólver no pescoço.

– Não abre a boca, cegonha, senão te apago.

O cego ficou quieto, tenso. O irmão tinha saído há poucos segundos. Ao que parece, este indivíduo o escutou, e conseguiu lhe imitar a voz. Isso pensava, quando sentiu que o metal se afastava da sua pele.
– A grana! Onde está a grana, cegonha?

O cego não abriu a boca, mais por medo do que por vontade própria. Só quando sentiu que o outro tinha recuado uns dois metros porque ouviu que estava mexendo na mesa, respondeu:

– Eu não quero violência.

– Violência… Vou te matar, se não me disseres onde está a grana! – berrou o assaltante.

– Vou te dizer. Vamos devagar. Deixa respirar primeiro… Sem violência, por favor. Sem violência – disse o cego, afastando-se uns centímetros para a esquerda.

– Onde? Ou me dizes já, ou te mato primeiro e procuro depois.

– Vão ouvir o barulho – disse calmamente o cego.

O outro não respondeu. Ao cego pareceu que o assaltante se virava, olhando a parede do outro lado.

– É naquela parede, sim.

– Atrás do quadro?

– Atrás do quadro – disse o cego e, com um rápido movimento do ombro, desligou a luz, que estava à sua esquerda.

– Filho da puta! Maldito! – bramou o outro. O cego sabia que para o outro a escuridão era total, mas que isso duraria muito pouco. Tinha só esses primeiros segundos para agir. Deslocou-se velozmente até a mesa e pegou o pesado cinzeiro de cristal. Com um rápido movimento dos pés, ficou descalço, assim o outro não lhe poderia ouvir. Chutou os sapatos para longe. Fizeram um barulho contra a parede oposta. Assustado, o assaltante disparou a arma contra o chão, duas vezes.

Para o cego foi suficiente. Bateu no braço do bandido com o cinzeiro, com muita força. A arma caiu no chão. Pelo grito, adivinhou onde estava a cabeça do homem. Bateu nela com todas as suas forças. O assaltante fez um barulho estranho, como um bicho ou um brinquedo quebrado, e caiu. O cego continuou a bater na cabeça do outro, já no chão, até ficar exausto. Não ouviu mais nenhum barulho saindo do corpo do assaltante. Sentiu um líquido quente na ponta das meias. Percebeu com os dedos do pé que era algo que saía da boca do assaltante.

Pelas dúvidas, colheu a arma, depois de tatear um pouco no chão. Lentamente, foi até o telefone. Chamou a polícia.

– Alô? Aqui é da rua Antonio Prado três meia três. Apartamento noventa e sete. Houve um assalto… Como? Sim, tragam uma ambulância. Um momento. – Tirou o telefone do ouvido. Parou para ouvir se vinha algum som desde a parede oposta. – Não, urgência não tem não.
 

Iván Izquierdo
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

O conto acima foi publicado em O outro lado da ciência vol. II, livro que acaba de ser lançado pela Editora Vieira&Lent; . Organizado pelo bioquímico Leopoldo de Meis, professor da UFRJ, o volume reúne contos, crônicas, impressões e relatos autobiográficos de 16 pesquisadores de instituições científicas de diversos estados brasileiros. Os textos ajudam a desmontar o estereótipo do cientista autocentrado, ensimesmado e ininteligível.

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