O desafio da spintrônica

  

O principal componente da indústria eletrônica é o transistor, usado principalmente como amplificador e interruptor de sinais elétricos. Você deve ter à sua volta uma quantidade inimaginável deles, distribuídos nos televisores, nos sistemas de som, nos celulares, nos computadores. Para se ter uma ideia da quantidade, em um quadrado com um milímetro de lado é possível colocar mais de um milhão de transistores!

Atualmente, o dispositivo mais usado na indústria eletrônica é o transistor de efeito de campo metal-óxido-semicondutor, mais conhecido na literatura pela sigla em inglês MOSFET. Ele tem três terminais, denominados fonte, dreno e porta. Entre os dois primeiros existe um fino canal para condução elétrica. A fonte serve para injetar corrente elétrica e o dreno serve para extrair essa corrente. A fonte e o dreno são semicondutores com excesso de elétrons (tipo n), enquanto o substrato é preparado com um semicondutor com excesso de cargas positivas (tipo p).

Até os anos 1970, a porta era sempre um metal, separada do semicondutor por uma camada de óxido, daí o nome transistor metal-óxido-semicondutor. Atualmente, existem diferentes tipos de portas, como as de silício policristalino e vários tipos de nitretos.

Sem qualquer aplicação de voltagem, os elétrons são impedidos de circular entre a fonte e o dreno por causa das cargas positivas do semicondutor tipo p. Se uma voltagem positiva for aplicada na porta, ela “expulsa” as cargas positivas do semicondutor tipo p e possibilita a passagem de uma corrente entre a fonte e o dreno. O mecanismo é idêntico se os tipos de semicondutores forem trocados. O princípio básico é que a corrente elétrica é controlada pela manipulação que a voltagem exerce sobre a carga dos elétrons.

O modelo do MOSFET foi proposto pela primeira vez em 1930 pelo físico austro-húngaro Julius Edgar Lilienfeld (1882-1963), que patenteou, nos EUA, um dispositivo muito similar a esse transistor. Em 1935, o engenheiro elétrico alemão Oskar Heil (1908-1994) fez o mesmo na Inglaterra. Mas o primeiro protótipo só foi construído em 1959, por Dawon Kahng e Martin Atalla, nos Laboratórios Bell, nos EUA.

Desde sua comercialização, no final dos anos 1960, o número de transistores em circuitos integrados vem crescendo exponencialmente e praticamente dobra a cada dois anos. Se esse comportamento, conhecido como lei de Moore, continuar, espera-se uma estagnação do crescimento dentro de no máximo duas décadas, caso a indústria eletrônica continue dependendo exclusivamente dos semicondutores.

Uma alternativa que se vislumbra é substituir o controle da carga do elétron pelo controle do seu spin, um dos responsáveis pelas propriedades magnéticas da matéria. Essa mudança configura a passagem da eletrônica para a spintrônica.

Primórdios da spintrônica

Os transistores conhecidos como MOSFET são os mais usados atualmente na indústria eletrônica. O número desses dispositivos – cujo tamanho é bem menor que o de um palito de fósforo – em circuitos integrados praticamente dobra a cada dois anos (foto: Cyril Buttay).

Essa possibilidade ficou evidente depois da descoberta da magnetorresistência gigante, em 1988. Já em 1991, pesquisadores da IBM desenvolveram o primeiro dispositivo da spintrônica, conhecido como válvula de spin. Atualmente, praticamente todos os computadores utilizam esse dispositivo nos cabeçotes de leitura de discos rígidos.

Em 1995, a invenção da junção de tunelamento magnetorresistivo permitiu a fabricação do segundo dispositivo spintrônico: a memória magnética de acesso aleatório. Ambos os inventos proporcionaram avanços consideráveis na miniaturização dos dispositivos eletrônicos. Mas, para substituir a eletrônica, a spintrônica precisa ir além, precisa ter circuitos lógicos. E, para isso, é indispensável a fabricação de algo como o transistor.

A primeira proposta nesse sentido foi apresentada no final de 1989 por dois professores da Universidade Purdue (EUA), Supryio Datta e Biswajit Das. A ideia é impressionantemente simples. O dispositivo é similar ao MOSFET, sendo os semicondutores da fonte e do dreno substituídos por um material ferromagnético, com spins polarizados no mesmo sentido.

Assim como no MOSFET, no dispositivo proposto por Datta e Das – conhecido como Spin-FET – o controle da corrente também é feito por meio de uma voltagem na porta, mas o que se controla é o estado do spin do elétron na corrente. Ou seja, os spins da fonte ingressam em um canal e são manipulados até chegarem ao dreno.

Mas como é possível manipular o spin do elétron com um campo elétrico produzido pela voltagem? O spin está associado às propriedades magnéticas apresentadas pelo elétron. É como se o elétron fosse uma agulha imantada. Sendo assim, o spin só pode ser manipulado por um campo magnético.

A solução do enigma vem da teoria da relatividade restrita. No referencial do elétron, que está em movimento, o campo elétrico estático aparece como um campo magnético e é este campo magnético que vai manipular o spin. Sob a ação desse campo, o spin vai efetuar um movimento de precessão (mudança de seu eixo de rotação).

A voltagem na porta determina a frequência da precessão, o que significa dizer que estabelece o estado do spin quando o elétron chega ao dreno. Se o elétron chega com spin no mesmo sentido do spin do dreno, a corrente de saída é alta. Caso contrário, a corrente é baixa, muito próxima de zero.

Esforço para superar obstáculos
Embora aparentemente simples, o transistor de spin apresenta grandes desafios para sua implementação. Como é usual, a comunidade científica adotou um caminho reducionista para superar essas dificuldades. Assim, formou-se uma grande comunidade de pesquisadores dedicados ao problema da injeção de spins em materiais semicondutores. Outra comunidade foi formada para investigar materiais semicondutores para colocar no substrato do dispositivo e uma terceira comunidade dedicou-se ao estudo do processo de manipulação dos spins no trajeto entre a fonte e o dreno.

Todos esses materiais são colocados no dispositivo por meio de processos de fabricação de filmes finos, o que significa dizer que sempre haverá a dificuldade imposta pelas propriedades da interface entre materiais diferentes. Por exemplo, é muito difícil superpor materiais com redes cristalinas muito diferentes. O Prêmio Nobel de Física de 2007 Albert Fert (1938-) e seus colaboradores, entre os quais Mário Baibich, professor da UFRGS, encontraram uma forma de resolver esse problema durante a preparação das amostras que resultaram na descoberta da magnetorresistência gigante.

Amostra de manganês, metal utilizado para dopar semicondutores e lhes conferir propriedades magnéticas (foto: Wikimedia Commons).

Mas essa incompatibilidade dimensional não é a única nem a mais complexa dificuldade para o funcionamento de transistores de spin. Os candidatos naturais a fonte e dreno desses dispositivos são os metais ferromagnéticos (ferro, cobalto, níquel, entre outros), porque seus spins são facilmente polarizados. No entanto, os resultados experimentais com esses materiais foram decepcionantes. Menos de 1% dos spins polarizados foram injetados nos semicondutores a partir dos metais ferromagnéticos. A causa foi atribuída à grande diferença de condutividade elétrica entre os metais e os semicondutores.

Portanto, além da incompatibilidade dimensional, os pesquisadores tiveram que cuidar da incompatibilidade de condutividade. Entre várias soluções, três têm merecido a atenção de grande parte da comunidade científica. A primeira é utilizar semicondutores dopados com uma baixa concentração de átomos magnéticos, sendo o manganês o preferido. O composto mais estudado feito com átomos desse metal é o GaMnAs (que reúne também os elementos gálio e arsênio).

A segunda alternativa é utilizar semimetais ferromagnéticos. Ao contrário dos metais, que contêm elétrons com spins em dois sentidos (para cima e para baixo), os semimetais têm todos os spins no mesmo sentido. Portanto, os semimetais já estão 100% polarizados.

Entre esses materiais, as chamadas ligas de Heusler (por exemplo, o composto Co 2 MnGe) são as preferidas, por duas razões adicionais. Em primeiro lugar, algumas delas apresentam temperatura de Curie superior a 600 o C, ou seja, somente acima dessa temperatura o material fica magneticamente desordenado. Essa é uma característica muito interessante do ponto de vista prático. Em segundo lugar, algumas apresentam estrutura cristalina com dimensões similares às dos semicondutores III-V (alumínio, gálio, arsênio, antimônio, entre outros), o que facilita a deposição epitaxial (crescimento de cristais de forma ordenada) de um material sobre o outro.

A terceira alternativa utiliza uma junção de tunelamento entre a fonte de spins e o canal semicondutor, por onde os spins serão conduzidos em direção ao dreno. A mesma junção também é colocada entre o canal e o dreno. Neste caso, a injeção e a extração de spins não ocorrem diretamente, mas sim por tunelamento (propriedade que permite que os elétrons atravessem finas camadas de determinados materiais). Ou seja, há tunelamento entre a fonte e o canal, e entre este e o dreno.

O problema da separação de spins
A escolha do semicondutor é outro problema complicado, cuja solução ainda não foi satisfatoriamente obtida. Para uma eficiente manipulação dos spins ao longo do canal, o material semicondutor deve apresentar um intenso acoplamento (ou interação) spin-órbita, um fenômeno quântico muito complicado para ser explicado em poucas palavras. O essencial é ter em mente que este fenômeno provoca a separação dos spins.

MOSFET (pequeno dispositivo retangular preto, na parte de baixo da imagem) usado em um circuito (foto: Audrius Meskauskas Audriusa).

Quando se considera apenas a carga de uma corrente elétrica, todos os elétrons movem-se no mesmo sentido, independentemente do sentido do spin (para cima ou para baixo). Quando se considera o spin, a corrente com spin para cima segue no sentido oposto da corrente com spin para baixo. Esses sentidos da corrente estão associados a diferentes energias. Quanto maior o acoplamento spin-órbita, maior a diferença dessas energias, o que facilita o processo de seleção e detecção dos spins.

Supriyo Bandyopadhyay, da Universidade da Comunidade de Virgínia, e Marc Cahay, da Universidade de Cincinnati, ambas nos EUA, realizaram uma comparação teórica entre a performance de um Spin-FET e um MOSFET. Chegaram à conclusão de que o primeiro dispositivo só apresentará rendimento superior ao segundo quando materiais com forte interação spin-órbita forem desenvolvidos. Ou seja, no atual estágio do desenvolvimento tecnológico, o transistor da spintrônica não cumpre as promessas apresentadas na literatura: maior rapidez e menor consumo de energia.

Evidentemente, o ceticismo de Bandyopadhyay e Cahay não impede o avanço das pesquisas. Ao contrário, pode estimulá-las. Neste mês de setembro, a prestigiosa revista Science (volume 325) publicou um trabalho, feito por pesquisadores do Instituto Coreano de Ciência e Tecnologia, da Universidade Sejong (Coreia) e do Laboratório de Pesquisa Naval dos Estados Unidos, em que, pela primeira vez, é apresentado um protótipo de Spin-FET.

É interessante observar que a ideia do Spin-FET está se materializando mais rapidamente do que a do seu análogo eletrônico. Foram necessários mais de trinta anos até que se construísse um protótipo de um MOSFET conforme os modelos inicialmente propostos. Agora, ao completar vinte anos, o modelo de Spin-FET de Datta e Das já tem o seu primeiro protótipo. É a spintrônica pedindo passagem para revolucionar a indústria eletrônica. 

Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
25/09/2009