O genoma humano, Jorge Luis Borges e a Biblioteca de Babel

“Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências”.

A visão metafórica do genoma humano como uma biblioteca tornou-se quase um lugar comum. Desde os primórdios da biologia molecular, imagens lingüísticas, gramaticais ou bibliográficas têm sido empregadas com esse fim. Dizemos que a informação do DNA codificador no genoma (os genes) está escrita em um alfabeto de 4 letras (bases nitrogenadas) e é transcrita em RNA mensageiro e posteriormente traduzida para a linguagem das proteínas, que compreende um alfabeto de 20 letras (aminoácidos).

Até o início da década de 1970, o modelo que tínhamos do genoma humano era de um lugar bem organizado, mais ou menos estático, onde cada gene tinha um local correto e preordenado pela sua função. Assim, fazia sentido uma perspectiva biblioteconômica na qual os genes eram textos, os cromossomos eram estantes ou seções e tudo estava organizado de maneira racional, tendo evoluído sob a regência da seleção natural. Mas o quadro final que o Projeto Genoma Humano (PGH) nos revelou foi muito diverso!

Nosso genoma lembra mais um depósito do que uma biblioteca: desarrumado, sem qualquer evidência de organização, cheio de tralha acumulada (o DNA não-codificador), já que praticamente nada é jogado fora, mesmo que não tenha qualquer utilidade. Além disso, o genoma humano é dinâmico, os seus pedaços são embaralhados e mudados de lugar freqüentemente, sem razão ou rima.

Os genes codificadores são escassos (menos de 2% do total!) e estão espalhados descuidada e indiscriminadamente no meio de uma enorme quantidade de DNA altamente repetitivo, sem sentido ou função aparente – o chamado DNA-tralha* ( junk DNA ), que alguns traduzem erroneamente como DNA-lixo. As estimativas são de apenas 20 mil a 25 mil genes estruturais humanos, um número próximo ao da planta-modelo Arabidopsis thaliana (25.500) e do pequeno verme nematódeo Caenorhabtidis elegans (~19 mil genes). As previsões de 100 mil a 120 mil genes humanos, feitas no início do PGH, não se concretizaram.

Assim, a elucidação do nosso genoma – esta violação científica do nosso sanctum sanctorum genético – terminou em uma grande lição de humildade, a terceira que a ciência ministrou ao ser humano: a primeira veio com Copérnico e a revelação da Terra como um planeta qualquer e não o centro do universo (século 16); a segunda com Darwin e a teoria da evolução, demonstrando que o homem era uma espécie animal qualquer e não o ápice da criação (século 19). Agora, descobrimos que o genoma humano é um genoma qualquer e não tem muito de especial.

Tamanho não é documento

“… para uma linha razoável com uma correta informação, há léguas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e de incoerências”.

Se olharmos o genoma humano do ponto de vista evolucionário, em comparação com outros genomas, a coisa se complica ainda mais. O tamanho total aparentemente não significa nada. O tabaco, o lírio, a salamandra e outros têm genomas muito maiores do que o nosso. Há mesmo uma prosaica ameba ( Amoeba proteus) que tem um genoma com 690 bilhões de pares de base, mais de 200 vezes o humano. Obviamente estas diferenças não refletem uma variação no número de genes, mas sim na quantidade de DNA não-codificador (DNA-tralha*).

 

O número de cromossomos tampouco tem qualquer significado. O genoma humano contém 23, enquanto o da borboleta Lysandra atlantica tem 250! Finalmente o próprio conteúdo carece de sentido. Duas seqüências não codificadoras apenas, chamadas Alu e L1, estão repetidas milhões de vezes no genoma humano e representam 28% do total! No rato-canguru ( Dipodomys ordii), mais de 50% do genoma consiste de apenas três seqüências simples repetidas, sendo uma delas – AAG – repetida mais de um bilhão de vezes.

 

É preciso muita imaginação para tentar entrever desenho ou necessidade nesta bagunça genômica. Para tal precisaríamos invocar a capacidade humana que nos permite reconhecer nas nuvens elefantes, camelos, enfim, zoológicos completos. Se o genoma é uma biblioteca, que raio de biblioteca é esta?

 

Borges e o genoma humano

 

O argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) foi um escritor inigualável. Seus contos, enigmáticos e fantásticos, são curtos, mas com mais conteúdo que volumes inteiros, levando-nos a passar horas em especulações filosóficas. São como urânio comprimido em massa crítica – dentro de nossas cabeças explodem com a força de megatons. De interesse particular para nós na coluna de hoje é seu conto intitulado “A Biblioteca de Babel”, publicado no livro Ficções, de 1944, lançado no Brasil pela Editora Globo (cópias do conto podem ser facilmente encontradas na internet).

 

Nele é descrita uma biblioteca muito especial, que me trouxe à mente o genoma humano. Proponho então fazer um joguinho, uma brincadeira. Com a cara-de-pau dos nefelomantes, vou pinçar aqui algumas passagens de Borges cuja relação com a descrição do genoma humano acima salta aos olhos. Vamos lá: 

 

– “Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências.” 

 

– “… há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas.” 

 

– “… para uma linha razoável com uma correta informação, há léguas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e de incoerências.” 

 

– “… quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por dialetal ou rudimentar que seja.” 

 

“… ninguém pensou que o livro e
labirinto eram um único objeto”.

– “… cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que apenas diferem por uma letra ou por uma vírgula.” 

 

– “Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é quase milagrosa exceção.” 

 

– “A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.”

 

Não é um joguinho sensacional? Para terminar, peço emprestada uma pequena passagem de outro conto maravilhoso de Borges, também do livro Ficções, chamado “O jardim de veredas que se bifurcam”: “… ninguém pensou que o livro e labirinto eram um único objeto”.


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
12/05/2006